Necrópolis, 6 minutos do Ano da Salamandra  

Posted by Fabio

Necrópolis, aos 6 minutos do ano da Salamandra.

Ali estou eu. Minha sombra mais adiante, abrindo caminho com um sorriso falso. A sombra quase tão fria quanto minha febre, confundida com uma outra, sósia/homônima, mas tudo aparentemente. E vocês, continuam sentindo a minha falta? Continuam a perguntar por mim nas encruzilhadas?  Em cabanas distantes, exuberantes jazigos? Eu me aproximo, notem como pareço um personagem complexo, tão indescritível que não haverá mesmo descrição. Não bastasse eu estar aqui (estou aqui, agora), ainda tenho de usar essas roupas estranhas – essa nova modalidade de encontro social, o “enterro à fantasia” - o que não fazemos para não cair no ostracismo, para não deixarmos de receber convites insanos, até mesmo comparecer numa espelunca dessas, com o fito de celebrar a morte do sociopata. Mas sou eu, certo? Causa estranheza essa minha nova forma incorpórea? Meu rosto esculpido na pele do fantasma de uma cucurbitácea? Estou logo à sua frente. Close no meu dente do siso. Eu não pareço sorrir? Talvez esteja difícil reconhecer o meu riso jovial sob a maquiagem sórdida? Não pareço sorrir, então. Não!? Leitores? Autores? Frederic? Não!? Não há motivo?

Eu bem que andava desconfiado de que isso aqui fosse coisa séria:

- Então está bem. Deixe-me esclarecer uma coisa, agora, de uma vez por todas, e quando eu digo ´esclarecer´, o que eu quero dizer é exatamente isto: “esclarecer”. Eu não estou mentindo. Eu não posso mentir. Vocês já sabem disso. Eu não vou confundi-los. Nem a vocês, leitores. Nesta altura do campeonato – já seis minutos do novo capítulo – é sabido que incertas coisas em minha autobiografia não autorizada, são verdades, e que incertas outras, muitas até, não são. A finalidade de uma reescrita é contar-lhes apenas e tão somente a verdade. Parece simples, mas para lhes contar a verdade ao meu respeito é preciso que eu saiba, antes, que verdade é essa. Dito de outra forma: é preciso que eu me interrogue sobre as razões de ter tentado, por todos estes anos de marmotas, jaguatiricas e lobos-da-tasmânia, me passar por mim mesmo, ocultando minha imagem sobre o véu do “verdadeiro eu”. Se eu descobrir, completarei minha história. Sem lacunas ou adendos, sem trapaças (“baseado em fatos reais”). Talvez nesse dia eu já esteja olvidado, talvez eu já me tenha olvidado (de qual das autobiografias mesmo eu estava falando?).  Talvez minha história já não seja minha, talvez seja a sua, talvez... Amigos, de mim só receberão luz!

Em compromissos sociais como este, o melhor é chegar cedo, liquidar logo com o motivo de estar ali e ir embora o mais depressa possível. Infelizmente, eu sou apenas parte da história e o aglomerado de pessoas era tão labiríntico que tentar sair pela tangente era perigosamente um meio de tornar-se o centro das atenções. E vice-versa.  De modo que atravessarei esse espaço em branco, logo abaixo, no que o próximo parágrafo se passará numa região mais tranqüila do cemitério (o bom de ser o narrador é que podemos nos dotar com essas características maravilhosas de teletransporte, evitando assim uma série de situações fatigantes, até mesmo para o leitor).

Fiquei a meditar sobre o meu discurso.  As verdades mais simples são aquelas que antecedem à honestidade. Minhas memórias, que são verdades simples, talvez não sejam suficientes para lograr um veredicto sobre minha identidade; se esse for o caso, decreto, desde já, por convenção, que ainda sou o mesmo, e que, apesar de não ser eu mesmo, eu, mesmo se existisse, não seria quem sou, embora eu me lembre, ao menos, de já ter sido. Uma gota de chuva caiu sobre minha cabeça. Passei minha mão sobre ela e, “qual não foi a minha surpresa” (a saber, nenhuma), ao verificar que a gota havia se transformado num bilhete!!!! (o poder me corrompeu, admito, mas as facilidades tecnológicas são mais fortes do que minha imaginação). Neste bilhete estava escrito assim, meus caros: “Em seus horários de folga, será julgado o ilusionista”. Oh, não é impactante? A paisagem era agradável, uma garoa fina refrescava a multidão, flocos de neve refletiam o poderoso sol do meio-dia. Então vieram os ciclones, as erupções vulcânicas, os abalos sísmicos. Mas duraram apenas alguns segundos e tudo voltou ao normal, ou seja, à neve e ao sol.  Acho que é o suficiente para um julgamento tão importante. Agora recebo a alcunha de “o ceifador de sonhos”, e quisera mesmo poder ter sido. Serei absolvido por querer ser culpado? Eu profetizei minha vinda a este tribunal, eu me acusei e dos fatos, mesmo não sendo testemunha ocular, deles me inteirei através da imprensa. Quem são os meus juizes? Percebo que eles vêm de toda parte, são desde avatares desprovidos de livre-arbítrio até musas padroeiras do bloqueio criativo. Vão me interrogar, eu sei, sob tortura e juramento. Espalhado por aí será o meu retrato, grudado em postes de iluminação pública, distribuído por garotas sexy nos semáforos, estampado em santinhos com calendário do ano passado; o meu irredutível retrato em cartazes de “procura-se um defunto honesto” e pôsteres divulgando simpósios irrelevantes; o retrato, quem sabe, autêntico, e quem se importa, nas cabeceiras de inimigos esquecidos, instruindo simpatias e teorias da conspiração. Eu olho para ele, vejo ali um outro a emular o meu legado, mas não há legado algum.

Vamos correr com isso. O leitor talvez não tenha dificuldade, mas é preciso que eu próprio me veja, ali, onde a cena agora tem lugar, a saber, ali adiante, onde há pouco estive, antes de fazer uso de meus extraordinários poderes de retirada, conforme o roteiro que tentarei seguir, “nas águas tormentosas do zênite solitário – lá onde o creme purpúreo da manhã atravessa os dentes afáveis do campesino: no centro de gravidade do instante, no útero do Nada”. É preciso também que eu diga algo, antes que eu me perca de vista, sobre a infestação de zumbis metafóricos na “vasta terra desolada em que urubus cativos arquitetavam mórbidos flagelos”. Havia exceções: zumbis não-metafóricos, os zumbis de figuração, alguns pareciam verdadeiramente zumbis.  “Sorriam os zumbis, como monstros descalços”. Alguns choravam, “por não haver tempo de difamar a marquesa, nem de escapar aos sarcasmos maldosos do sanguinário bobo da corte”, que, por sinal, também cumpria uma função alegórica. Para não parecerem hostis, usavam um garfo chamuscado preso em suas tiaras, e em dias alternados tentavam sorver o orvalho das folhas com a força do pensamento. Pedaços de si mesmos espalhados pelos oceanos, pelas catacumbas e pelos laboratórios, guardados a sete mil chaves em ataúdes construídos com o dinheiro público. Mas também eles estavam temerosos da revolução proletária – era um tempo de velhas revoluções - e por isso mantinham suas cabeças nas covas, vigilantes, potentes carabinas entre os dentes,
prontas para o justo combate.

Era tanta encheção de lingüiça e ninguém dava a mínima realmente para o cadáver propriamente dito jazendo no opaco chão frio como um picolé de bife mal passado. O cadáver era um elemento estranho, descontinuado ao cenário, não fazia parte da paisagem, e era mesmo avesso a ela.  O cadáver jazia no chão sem que ninguém notasse e isso era digno de nota.  Como era digna a nobreza cadavérica, já devidamente fantasmagórica, resistente aos olhares concretos ao redor.  Tudo ao redor era sólido, e parecia destinado a ironizar as virtudes de um materialismo neo-hipócrita. Desviarei o meu olhar de cena tão triste. À espreita, atrás de uma lápide manchada com o sangue de uma galinha preta vitimada por um despacho de Exu (que, disfarçando, requeria expedição de ofício a Satanás para prestar esclarecimentos sobre o fato), uma coruja espiava os espectadores e os espiões. Não longe dali também podia ser ouvido um uirapuru voyeur.  De tempos em tempos a coruja planava pelo sarcófago do Duque de Dedeuqud, colidindo com uma torta de pêssego. Mas não façam juízo precipitado dela, leitores e amigos, que ela estava consciente de perfazer com sua trajetória um pastelão de pouca categoria. Digamos que ela cumpria ordens e, sobretudo, não queria confusão. As rotinas de vôo eram fastidiosas e a coruja ficava profundamente vexada com elas. Fui informado de que ela nada recebia por seus pairados insalubres. Porque a maldita torta – essa informação eu só estou recebendo agora, pelo ponto eletrônico – ficava acoplada a um ninho de vespas. Houve alguma discussão em torno do trajeto descrito pela coruja – se uma parábola ou uma hipérbole -, mas ela negava respostas fáceis (a coitada achava que com isso estaria sendo vingativa). Mas atrás do avental da coruja também havia esperança e bondade. Esperança no futuro, nos jovens poetas, nas jovens formigas (ela havia conhecido Pai Jack na aldeia de Cariatuca), na juventude quase cintilante dos bondes pirofágicos do Reino das Britadeiras Falantes. E a bondade ficava patente no capacete de bronze que ela levava a tiracolo, que continha a inscrição “bem que eu avisei” gravada em ´bronze´ (e quando eu digo “´bronze´” eu me refiro ao fato da nova frase ter sido grafada sobre a palavra ´bronze´). Oportuno ainda mencionar que, dois anos antes da invasão dos zumbis, a coruja havia extraído uma pedra filosofal do rim, e guardava com orgulho o recorte de jornal que divulgara o incidente.

MANCHETE

“Rim de falcão peregrino será leiloado amanhã no hospital municipal”

Havia decerto alguma deturpação dos fatos, mas ao menos a foto era dela, a honrada coruja deitada numa maca, fazendo o sinal de ok. Parecia sorrir atrás do balão de oxigênio.

A coruja, portanto, revelara disciplina e um método de trabalho seguro, o que a fez ser convidada para desfilar em carro alegórico. E quando eu digo carro “alegórico”, eu não quero dizer que o carro era alegórico ou mesmo “”alegórico””, e sim que era “”””alegórico””””. Ela bem que queria ficar comovida, agradeceu em tom choroso: “depois não digam que eu recusei”, e entrou numa gruta, onde a primavera se escondia. A primavera irá aparecer mais adiante, protagonizando uma cena crucial para a compreensão do argumento que defendo neste texto.  Conste ainda – a lista já está no fim - que a coruja freqüentava aulas de kung fu, e fazia o possível para respeitar as leis de trânsito. Ufa!

Amigos, é claro que vocês já notaram a atmosfera lúgubre que oprimia a cidade. Era um tempo de síncopes e contratempos. Havia um quê de revolução francesa no ar, como já sabem, havia terror e ilustração. Tudo começou porque os zumbis queriam ampliar o seu mercado imobiliário e ocuparam um bordel de propriedade estatal. Após algumas tentativas frustradas de negociação (entre as quais a de que os zumbis poderiam usufruir gratuitamente dos serviços públicos), foi decidido pela executiva nacional dos morto-vivos que as próximas invasões seriam em propriedades privadas. A aristocracia entrou em alvoroço, medidas firmes tinham de ser tomadas. O governo, que já confiscara os pula-pulas das crianças e, para piorar, sobretaxara os quadros de Mondrian – coqueluche do verão – agora também estava disposto a convocar todos os primogênitos para se juntarem ao glorioso coral da “transição democrática”, que entoava hinos patrióticos em comoventes cerimônias ao ar livre. As sarjetas já escoavam as águas vermelhas da decadência, os tapetes triunfais desbotados pelos militantes da fama passageira. Na periferia, um mercado negro de imóveis culminou em fuzilaria entre gangues de zumbis adversários.  Indiferente a tudo isso, o uirapuru voyeur acendeu um charuto e, seguindo as orientações de sua bússola, lançou-o ligeiro à noroeste. O charuto perdeu o contato com a realidade.  Em terreno fértil, suas chamas estariam alforriadas.  “Os não-fumantes jamais me entenderão”, disse, “mas o charuto não tinha uma saída de emergência”. As queimaduras, por sorte, foram trocadas por duas cestas básicas.

Depois de se banhar na fonte da juventude (o diretor de arte incluiu uma “fonte da juventude”), a coruja abriu os olhos. Depois fechou. Então abriu e fechou de novo. Voltou a abri-los, mas em seguida os fechou. Mais tarde, achou por bem abri-los outra vez, e até os arregalou, mas tornou a fechá-los logo depois, imediatamente os abrindo e fechando. Posteriormente a este acontecimento, a coruja abriu e fechou os olhos, abriu, fechou e ficou abrindo e fechando sem parar até fechar. Finalmente abriu e morreu macabramente.

- Alguém aqui já estudou o conceito de filodoxia?

- Quando começa o horário de verão?

- Parece que as metáforas vão ser proibidas.

- Calem-se! Parem de fingir que não se importam. Por que a bendita não morreu no primeiro parágrafo, na primeira linha?

- Talvez ela tenha querido nos livrar de sina semelhante.

- Não estamos seguros neste texto.

- Eu olho para o espelho, e vejo apenas um espelho.

MÃE DINÁ – Dize-me quem vês no espelho e eu te direi quem és.

NARCISO – Espelho espelho meu, existe alguém que goste de mim mais do que eu?

ESPELHO – (mostra a imagem de Narciso)

NARCISO – Quem é esta loira tingida horroróooosa, que gosta de mim mais do que eu?

MÃE DINÁ – Óia, fio, cum toda certeza essa loira é a Xuxa.

NARCISO – Vai embora, coisa ruim! (atira um toco de pedra-sabão no espelho, que se fende em 7 pedaços).

ESPELHO – (desregulado, apresenta uma reconstituição da morte de Jimi Hendrix, com fotografia desfocada)

NARCISO – (atira o espelho ao fogo)

EU – O que “Frederic” “quis dizer” com essa galeria de telas-espelho? Estaria ele nos insultando? É tão melhor assim do outro lado?

VOCÊ – Are you talkin´ to me? 

Attila Meskó era um que fazia figura distinta. Esfuziante ele dançava, era um hoedown, arriscava uns piparotes, engabelava com um violino de um só corda (as demais, arrebentadas, pareciam acompanhar o ritmo da dança), o bico do seu sapato quase meio metro à sua frente, espetando os companheiros de febre e assombração. Embora caminhasse com graça, sua sombra era coxa. Ali estava ele, “maldito Domotiulo”, entre os zumbis, a gravata borboleta escondendo os olhos, absortos nos passos inúteis, dos atos inconsciente de todo. 

- Eu voltarei! – ele gritou, tendo acabado de chegar.

- Será que o senhor não quis dizer “Eu voltei”? – perguntei-lhe

- Yaaakaaauulaaaahtkotkotkotkotpbilipslsoopppappapapahhoouuuuuur

- Como é que é? – eu é que perguntei, tentando criar um contraste irônico.

- Eu voltarei! Eu voltarei, Domotiulo!

Para ser sincero (eu não prometi não ser), confesso aqui minha perturbação: é que já não sei para o que olhar.  Não sei mais onde, nessa confusão nonsense de metáforas que não cumprem sua função, buscar sentido. Estarei sendo seletivo demais, ou de menos? Alguém que acaba de passar por mim me avisa que o “excesso de informações” de “nossa contemporaneidade falida dos dias funestos de hoje” dificulta o perfeito controle consciente das diversas abordagens possíveis, o milagre dos personagens que se multiplicam como pães, cada personagem contendo dezenas de personalidades, cada personalidade contendo centenas de múltiplas instâncias - e a conta está só começando.  Inclusive que eu caminhei mais adiante, que a conversa agora então estava assim insuportável. Foi quando me deparei com uma pavana para uma infanta defunta. A defunta, seus pais, sua irmãzinha mais velha, de não mais que seis anos (eu queria poupar o leitor de saber que ela possui cinco anos, sete meses, oito dias, quatro horas, doze minutos e vinte e sete segundos). Os pais sem entender o nobre gesto de um estranho que, do nada, iniciara uma elegia triunfal, uma elegia sobre heroísmo, coragem e sacrifícios:

- Por que o destemor desta jovem – prosseguia Domitilo Kasparkazu - nos enche de orgulho e inspiração. - O leitor já sabe, mas ele chorava: - E sempre nos lembraremos desta criança facínora, que se embrenhou nos pântanos da discórdia sem nunca deixar de pelejar contra todos os inimigos; sua espada agourenta manchada com o sangue dos mouros, dos otomanos, dos tupinambás! Almas ceifadas foram de nazistas, socialistas, iluministas, especialistas e nudistas! Cabeças rolaram de cristãos, hereges, infiéis, fanáticos, pagãos, descrentes, anões, bezerros, operadores de telemarketing e misses universo! Exegetas foram espancados, panegiristas foram destroçados; poliglotas e inadimplentes, escalpelados. Perdão não era o seu nome! De quem cruzasse o seu caminho, mãos, braços e pernas catapultados ao além, sem piedade ou privilégio: burgueses democratas, alquimistas escravocratas, frugais magnatas; capitalistas zen, senhores feudais assalariados e devotos iconoclastas. Logrou o ideal do extermínio, e nele não poupou pescoços, nem dos xiitas, nem dos trapezistas, nem dos criminosos irrecuperáveis; nem dos fracos, nem dos oprimidos, nem dos reis, nem dos príncipes, e muito menos da classe média conivente. Fulminou os intelectuais, os miseráveis, os roedores. Torturou pederastas, ex-pederastas, hermafroditas, tarados celibatários, estupradores castos, meretrizes frígidas e solteironas sado-masoquistas; açoitou afro-europeus, afro-asiáticos, afro-africanos (houve mesmo um caso de afro-egípcio), afro-nipo-mexicanos, afrodisíacos, ibero-descendentes, imigrantes de toda parte, migrantes de qualquer lugar; flagelou com toda a raça perversa, mulheres, crianças, velhos, embriões, prêmios Nobel da Paz, cubistas adolescentes, druidas lacanianos, wagnerianos judeus, parentes de primeiro e segundo grau...

Nisso um sujeito baixinho, com uma prancheta na mão, parecendo muito atarantado, apareceu com uma comitiva interrompendo a falação de Domitilo:

- Sr. Domitilo, esta é a quadra G1, túmulo 18, o senhor foi requisitado na quadra C1, túmulo 18, vamos, vamos, nos acompanhe, estamos atrasados.  O seu discurso é um dos mais aguardados.

Domitilo, perturbado com a interrupção repentina, e com todo aquele pessoal truculento praticamente o arrastando à força, não sabia o que dizer. As mãos, na altura do peito, pedindo uma explicação, o olhar assustado. Estava constrangido pelo desrespeito profundo com aquela família, cortarem sua homenagem de maneira tão grosseira, nunca vira coisa semelhante. Além do que, parecia uma tremenda falta de organização não informarem corretamente o local correto para onde devia se dirigir. Saiu com os braços levantados aos céus, como se pedisse perdão aos deuses por aquela gente inconsciente dos atos. Vamos segui-lo.

Negócio Arriscado.

J. - (O sujeito que comprou o rim da coruja) – Sinto-me bem melhor com três rins.

J. J.  – Por quanto você faz negócio?

J.  – Cem conto. O da coruja vale duzentos.

J. J. – Ofereço 150 pelo da coruja, mais minha vesícula, que está com pedras.

J.  – Com pedras não dá, vou ter que arrumar depois. Você não tem algum osso legal, uma articulação maneira? Fiz um transplante de vértebras uma vez, fiquei quase três anos com elas, depois troquei por um esqueleto completo, zero.

J. J. – Hum... serve os pinos do meu joelho?

J. – Sem chance. Duzentinho pelo da coruja.

J. J.  – Cento e sessenta e cinco, mais os três dentes que me restam e uma parte do cerebelo.

J.  – Como estão esses dentes?

J. J.  – Olha, um tá cariado, mas os outros dois estão beleza, fiz clareamento a laser recentemente, paguei uma fortuna, até dei um dos dentes como parte do pagamento ao dentista. 

J.  – Cento e noventa e cinco, sem o dente cariado.

J. J.  – Cento e setenta e cinco, sem o dente cariado.

J.  – Cento e noventa, com o dente cariado.

J. J.  – Cento e oitenta, com o dente cariado.

J.  – Cento e oitenta e cinco, com o dente cariado e com a amídala.

J. J.  – Eu não tenho amídala.

J.  – Cento e oitenta e cinco, com o dente cariado e com uma sobrancelha.

J. J.  – Cento e oitenta!

J.  – Fechado.


- Ouvi no noticiário que o inverno vai começar mais cedo este ano.

- Mais cedo, quanto? Será que vou precisar adiar minhas férias?

- Parece que serão apenas alguns centésimos de segundo.

- Mesmo assim. Eu sempre lembro daquele nosso amigo que foi despedido durante as férias.

- Mas ele tinha problemas de relacionamento. Uma vez entrou, ensandecido, num restaurante, a fim de revelar o significado de rosebud, aos gritos, para os convivas. Depois de ser lançado ao asfalto, continuou importunando os transeuntes, julgando ser uma atitude máscula.

- Essas coisas realmente me amarguram.

- Estamos aqui, o vento desvia de nós e, no entanto, insistimos em selecionar nossos preconceitos.

Domitilo já está chegando no local correto onde deve discursar. O movimento só aumentou desde que eu estivera ali.  Havia agora uma guilhotina improvisada na qual as crianças zumbis brincavam de decapitação. Faziam uma fila para perderem a cabeça, e competiam para ver de quem era a cabeça que rolava mais longe. Depois, grudavam novamente a cabeça no pescoço e recomeçavam a brincadeira. O almoço já fora servido, e Brócoli havia caído dentro de um caldeirão de feijoada (“socorro, Domitilo!”), mas o mais interessante é imaginar como isso poderia ter acontecido. Alguns zumbis queriam discursar também. Mas nenhum deles irá discursar, eu não suportaria. Já basta o fato de que o roteiro informa a existência de um discurso de Rabanete daqui a uns vinte parágrafos.

Um painel eletrônico anunciava os discursantes pelo número de senha.

- Ufa, chegamos a tempo. O seu discurso é o de número 744, Domitilo. Faltam apenas 3.

- O meu é só o de número 1516... – lamentava Diabrete.

- Alguém viu minha senha? Inclusive será que eu a perdi? Sou o número 991! 

- Mas você já não tinha discursado?

- É que eu fiz várias inscrições, inclusive. Ainda tenho nove discursos para fazer. Então agora é assim.

...

- 744

- Amigos! Oh! Ah...Ohhhh. Aahaiahooo. – teve início uma quase cena de contorcionismo, temperada com prantos terrificantes e soluços espetaculares; Domitilo fazia sinais de que não tinha condições emocionais de prosseguir, ameaçava abandonar a tribuna (a qual ficava sobre o túmulo) – estou muito abalado, me desculpem. – Todos tiveram de esperar durante quarenta e quatro minutos Domitilo se recompor; quando ele finalmente retornou ao púlpito, novamente teve uma crise após o “ó amigos”. Mais quinze minutos de espera.

- Começa logo isso aí, Domitilo, estou louco para fazer o meu! – não se continha Diabrete.

Domitilo logrou, com dificuldade, proferir estas palavras:

- Esse momento é comovente demais para mim. Por isso, meus caros, é que insisto para que compartilhem comigo este momento. Antes de mais nada gostaria de agradecer ao amigo Nereu Raviola, sem o qual eu jamais teria conquistado este prêmio.

- Que história é essa de prêmio, meu chapa, você está aqui para fazer uma oração fúnebre!

- Ai, Domitilo, você não vai me agradecer também, Domitilo? Quanta injustiça!

Domitilo, novamente apanhado de surpresa, mesmo em choque, mesmo inconformado com mais uma demonstração desmedida de falta de organização dos realizadores do evento, procurou emendar o discurso, para não fazer feio:

- ... pois é um prêmio estar aqui hoje – Domitilo se esqueceu de explicar o que Nereu tinha que ver com isso – um prêmio poder tecer aqui honrarias ao nosso saudoso Alfred.

- Frederic! – berrou alguém, na multidão.

- Ao Fred, eu disse, nós éramos amigos muito chegados. Fred e eu costumávamos nos encontrar nas convenções anuais de pescaria. E hoje, quem poderia imaginar, estamos aqui para comemorar a sua morte, que segundo soube, ele faleceu há menos de três semanas.

- Ele morreu ontem! – gritou alguém

- Ó, é tudo tão recente! Frederic é daquelas pessoas que só morrem uma vez!

- Sim, e que quando morrem deixam toda uma vida para trás! – motejou um engraçadinho, tendo um ataque apoplético em seguida, deixando toda uma vida para trás.

- E agora estamos aqui – continuou Domitilo - acompanhando esse funeral tão vistoso. Eu nunca me canso de apreciar o requinte lúgubre dessa gente tão póstuma, a gente finada. Toda esse clima mortuário me faz lembrar dos tempos em que eu visitava o meu tio avô no norte da Dinamarca. Ele costumava me repreender por não decorar as poesias que ele recitava para mim. No entanto, hoje vou recitar uma poesia dele, uma das poucas que me lembro, como sinal de gratidão pela morte de meu grande amigo.

“A vida é assim
É como se fosse um amendoim”

Domitilo parou por um instante. Era “amendoim” ou “zepelim”, ou seria “outrossim”? Sim, parecia ser isso:

“É como se fosse um outrossim
Em que cada flor, cada pétala de flor, cada espinho de rosa sangrando o dedo sujo de mertiolato
É uma forma de...

O que era mesmo?

- ...uma forma de... – Domitilo finge chorar enquanto não encontra a palavra - ...uma forma de...! Meu tio-avô morreu quando escrevia este poema fúnebre, meus amigos. Ele contém uma grande lição, pois os espinhos parecem ser coisa agradável, mas é o que faz toda a diferença para a vida ser trágica. Frederic viveu uma vida trágica, e vejam só onde ele está agora! – Domitilo fica em silêncio, achando que suas palavras profundas precisavam de um certo tempo para se fazerem ecoadas. Depois, pede para a banda, que não parava de tocar a marcha fúnebre de Chopin em ritmo de mambo, a executar uma música circense enquanto ele fazia um número de malabarismo com cachos de uva, e Brócoli, com uma roupa de aristocrata francês do século XVII toda suja de caldo de feijão, o acompanhava, dançando. 

O cardápio não consistia apenas de feijoada. Havia rodízio de massas, carnes, saladas e doces. Quem estava financiando aquilo, e para quem iria o dinheiro dos ingressos? Temo só de pensar. É claro que também estavam ali penetras e foliões, a maioria embebedados, disputando quem mais comia. A disputa visava disfarçar, com áres lúdicos, a extrema fome dos sujeitos, que achavam que seria indelicado comer demais sem estarem muito bem fundamentados. Gordiabo era um dos que participava da disputa. Sua presença aqui visa agradar aos fãs de horror gore, já que os zumbis não conseguiram cumprir essa função. Já de cara, Gordiabo engoliu, sem mastigar, catorze panquecas, dois perus assados, vinte e oito coxinhas e nove almôndegas; sua epiglote, revoltada, fazia piquete na entrada do esôfago, bloqueando todos os alimentos vindouros. Gordiabo, todavia, só queria saber de comer. Essa era a razão de estar ali. Sem consciência da própria fome, continuou enfiando as guloseimas goela abaixo, sessenta pizzas de mussarela, cento e vinte de calabresa, macarronada a granel. Mas a epiglote era firme. Não demorou para Gordiabo perceber que estava com “certa dificuldade digestiva”, o que, no entanto, não era suficiente para interromper a comedeira. Dezessete bifes de fígado, dezenove ovos de avestruz, cento e quinze porções de lasanha, trezentos e trinta e três espetinhos de lingüiça (incluindo os espetinhos), oitocentos e oitenta e oito pastéis de palmito – a comida ia sendo entulhada na boca, sem mastigação, não havia espaço para a arcada dentária se movimentar. Setenta e quatro hambúrgueres e cinqüenta e oito cheeseburgueres, mil e dezoito chucrutes mais o dobro de bacalhoada, uns dez metros da extremidade de uma bochecha à outra, que completamente abarrotadas, já não permitiam a Gordiabo estabelecer nenhuma comunicação sonora. Incontáveis pudins, quindins, brigadeiros e trufas carameladas. O contorno dos lábios rasgados, só o que se via era um bolo de carne que ia sendo continuamente socado para dentro, para mais moquecas, quibebes e paçocas entrarem. Como ele tampouco conseguia respirar, foi necessário que passasse a usar uma câmara de oxigênio. Nhoque de gelatina, risoto de maria-mole, rapadura de camarão.  Diabrete ajudava Gordiabo, abrindo espaço em sua boca com uma furadeira elétrica, formando pequenas lacunas em que novos guisados e rocamboles eram depositados, Gordiabo jazendo no chão opaco e frio, suas bochechas cobriam todo o seu corpo. A pressão da comida contra o céu da boca fez os olhos saltarem para fora e se perderem, os maxilares já há muito rompidos, bem como as gengivas que foram descoladas dos dentes e misturadas com o alimento. Junto com as tortas, os frapês e as maçãs do amor (Gordiabo estava apaixonado), ele devorava também remédios para dor, que não faziam efeito, por permanecerem na boca. Sete mil, quinhentos e quarenta e cinco asas de frango – ele voltara aos salgados depois da sobremesa -, quinze mil novecentos e doze salsichas empanadas, além de mil e outras tantas, refogadas. As glândulas salivares já tinham desistido de cumprir sua função, indignadas com as condições apavorantes de trabalho. Assim, dois engenheiros foram contratados para instalarem um grandioso sistema de irrigação na boca de Gordiabo.  Sangue era retirado de suas artérias e injetado na comida (a idéia foi de Domitilo Kasparkazu), a epiglote superpotente também já se resignara, e o bolo alimentar (quatrocentos bolos de aniversário, oitocentos de desaniversário, oitenta mil bolinhos de chuva) começava a se dispersar pelo corpo. A comida saia pelas orelhas, pelas narinas, pela urina. Gordiabo suava empadas e lacrimava sanduíches. Suspeitou-se de uma fratura no tornozelo, mas era o tornozelo de uma ave, perdida em suas canelas. Com um desentupidor de pia, Diabrete tentava confortar Gordiabo, mas infelizmente o seu discurso ficou reduzido a um peido faraônico, que fez muita gente desistir de esperar para fazer o seu.

Quem poderia imaginar que Gordiabo seria o responsável pelo momento mais enciclopédico do funeral? Sua explosão dando margem a pesquisas hermenêuticas e ressuscitando alquimistas como de um sono profundo. A carniça ambulante desintegrada em adubo de miséria. Máquina mortífera, revolução industrial, os fragmentos do inferno cobrindo os leitos de morte, a bomba de hidrogênio era feita, na verdade, de chucrutes. O lodo espumante de estrume voraz lancinava as almas desesperadas, a rançosa monstruosidade coroando a manhã nauseabunda, poluindo o próprio lixo com sua podridão de rastros pustulentos e vapores de enxofre apoteótico, e parecia estranho, mesmo aos urubus, mesmo ao mais metafísico dos abutres, parecia muito estranho naquela manhã de escórias e abominações, de pestilência genocida preocupada com o social, que o “pum atômico” tivesse causado estupor nos zumbis. Os zumbis, aberrações semânticas de morte “em aberto”, estavam mortos.

RABANETE

Então agora é assim? Inclusive que então, agora, então é assim inclusive? Agora ficam fazendo retrospectiva das melhores gafes do ano, e inclusive que já pediram também minha opinião, mas agora inclusive que a temática é mais iluminista e estavam curiosos para saber o que eu penso inclusive sobre as revoluções, e sobre o ovo e a galinha, e também essa história de o Tempo é composto de “momentos inesquecíveis”. Que inclusive é que é tudo uma farsa ideológica para esse pessoal manter os seus empregos, cocorejando suas idéias, é isso é que é. Mas então vem com essa história de que o indivíduo nasce, cresce, sofre, tem muitas emoções e morre? Qual! E que são sempre as mesmas emoções! E ninguém fala nada sobre isso, é incrível, é tudo uma hipocrisia do cão, e que inclusive raivoso ele é. Que vem falando agora sobre as novas emoções, que inclusive experimentaram algumas, mas é tudo balela para continuarem escrevendo e vendendo os mesmos livros, é o que eu digo! Todo mundo só quer saber é de disfarçar, fazendo vista grossa para os novos experimentos, porque é isso que a nossa sociedade contemporânea falida dos dias atuais considera que é bom para manter a “felicidade” psíquica da massa, e também o dinheiro no bolso desses mecenas incultos, inclusive falidos também. É isso o que é, modéstia a parte, eu sei o do que estou falando e também o que acontece por aí nesse lado sombrio da existência que eles fingem não existir. Inclusive que sei o que acontece. É tudo uma podridão esse esquema de disfarçar, que é inclusive que por isso que ninguém mais escreve poesias como antigamente, que agora virou moda fazer elogios às coisas mais óbvias, como se fosse para demonstrar delicadeza de sentimento. Qual, qual e qual! Onde inclusive vamos parar? Mas alguém hoje em dia está interessado em se emocionar com as emoções verdadeiras, e aquelas que realmente interessam para a formação emocional do indivíduo? Nada, que hoje em dia, nesses tempos de hoje funestos, hoje só querem saber mesmo é das emoções de sempre, do tradicionalismo barato do sentimento maria-vai-com-as-outras, e é por isso que ninguém realmente se emociona de verdade quando é necessário. Qual que é! Inclusive que até a compaixão moral agora é onda do momento. Todo mundo quer fazer tatuagem e ter compaixão. Inclusive que isso é assim agora. Agora também tem essa história de conformismo, e de casamento guei entre pessoas da mesma família. E até agora a empatia foi elevada ao status de sentimento “cult”, que também fazem apologia da “vida bandida” glamourosa, só porque eles viram na televisão, nem no cinema foi. É duro de agüentar, inclusive, nos dias de hoje, essa filosofia furada pós-galinácea de sentimentalismo barato e experiências novas, que inclusive até de experiências com drogas eles estão falando agora, mas alguém quer experimentar? Qual, que drogas que nada, que eles preferem ficar nesse esquema piegas de “tinha de ser assim mesmo”, e ainda ficam falando, ainda por cima inclusive, do ovo que eles mesmos botaram e nunca viram. Inclusive que então agora é assim, que agora ainda temos que suportar tudo isso de bico calado isso é que é o pior, a gente nem consegue protestar direito contra esses absurdos modernos, é por isso que eu digo e continuo dizendo, inclusive, que agora então é assim! 

DIABRETE

Só faltam nove!

CORUJA

Não olhem. Não me mordam. Não me queiram bem. Não me ajustem aos seus instintos. Não façam promessas em meu nome. Não me paguem o que eu devo. Não escutem o que eu tenho a ouvir. Não zombem da minha fadiga. Não sustentem a minha nobreza para terceiros enquanto durar a minha fé. Não queimem os meus escritos antes que eu seja olvidado. Não se curvem diante de minha mansidão. E quando for a hora, não se queixem pelos meus lamentos. Quando eu estiver na latrina, não rufem os tambores. Quando eu for jovem novamente, não pisoteiem meu canteiro de jasmins. Quando eu sorrir pela vez derradeira, não façam mais piadas ingênuas. E se eu for embora, não me deixem voltar. E se eu ficar, não me deixem fugir. Mas se eu fugir, não me deixem encontrar. E se eu me encontrar, não me mostrem o caminho de volta. Mas se eu voltar, deixem-me.

AMEBA DA MADRUGADA

Evocação ao abismo: oh abismo das trevas do mar, eu vos conclamo para que compareça aqui agora e profira o seu nome, em vão, no vão das escadas. Abismo, eis-me aqui, agora.

TORVELINHO DA ESCURIDÃO

Quem já viu minha imagem numa orla de riacho e parou para refletir o que de praxe se esconde? No horizonte, quem mirou a utopia, quem lembrou da profecia, agora todo sempre amanhã?

CRISÂNTEMO DAS GALÁXIAS

É bom mesmo que desfrutemos da salada e não demoremos a fustigar o novo feijão. Trazemos conosco uma nova esperança, e o futuro agora pode ser previsto. Já não se trata mais de vida ou morte, fomos atiçados pela cereja do bolo, crueldade, os fungos brilhantes zombam de nós, deslizamos por uma nuvem acrobata. Não é difícil entender porque as palavras têm esse poder restrito sobre nós, cada um de nós uma palavra.

RAPOSA

Certo, não alcancei as uvas. E só por isso tenho sido execrada todos esses séculos como um símbolo do orgulho despeitado, da hybris ressentida, da impotência invejosa. Contam minha história para as crianças, insuflando nelas desde cedo os vícios que pretendem combater; instruem-nas em desconhecer a misericórdia, esperando que unissonamente ajuízem: “bem feito para ela, quem mandou ter tanta empáfia?”. Desde então nunca mais fui procurada para esclarecer este incidente e dar minha própria versão dos fatos. Agradeço pela oportunidade de poder fazê-lo aqui, neste espaço democrático.  Pra começar, as pessoas falam do que não conhecem. Eu estava com fome? Consta que sim. Admito que estava. Mas o que não consta é que eu fosse particularmente uma entusiasta das uvas. Em verdade eu prefiro figos e nêsperas. Alguém conhece realmente o contexto cultural no qual estes fatos se deram? Sabem alguma coisa sobre a pressão social sofrida por mim para que alcançasse as malditas, sabe do horror ainda pior do “nem tentar tentei”? Então, porque me julgam? Alguém teve informação segura sobre as uvas estarem realmente maduras e doces? E se não estivessem, se eu as alcançasse, deveria comê-las mesmo verdes? Machão na frente de todos, mas gritando por mamãe depois na cloaca? Eu não gosto de uvas, as uvas estavam verdes, só fingi que tentei alcançá-las para afagar o meu super-ego. Eu sou vítima nessa história. Vítima!  Sim, eu voltei depois quando alguma coisa caiu – é pecado ser curioso? Se fosse uma uva, e daí? E se eu quisesse a uva verde? Só comemos estritamente o que adoramos? E se fosse, excepcionalmente, uma uva madura, teria algum mal eu apreciá-la? Só porque eu não gosto de uma coisa sou obrigado a não gostar para sempre? Não posso rever meus conceitos, minhas crenças e até o meu paladar? E se, por outro lado, eu realmente quisesse todas aquelas uvas maduras, haveria algum problema nisso? Só porque eu tentei e não consegui todo mundo me chama de má perdedora, mas alguém leva em consideração o calor do confronto, a raiva que eu senti naquele momento de derrota acachapante? Quando estamos irados pela vergonha dizemos coisas que não queremos, ou pelo menos não devíamos dizer! Ninguém levou isso em consideração, me estigmatizando por completo. E a cada nova versão da história ela fica mais sádica, as uvas – minha comida predileta – são mais doces e suculentas a cada reescrita, e minha fome, que já era colossal quanto se deram os fatos, a cada versão se torna mais monstruosa. Aqueles que não forem patéticos como eu, que atirem a primeira uva (madura, por favor), e comecem logo a me condenar. Sei que mereço o opróbrio eterno, mas não consigo mudar minha natureza.

DIABRETE

Só faltam quatro! Só faltam quatro!

TORVELINHO DO ALVORECER

O sol brilhando na imensidão do céu azul, as gotas de suor de minhas costas refletindo o incêndio de minha alma, as almas defenestradas do paraíso dentro do espelho perdido, o enxame de cupins corroendo a matéria residual, o sonho do profeta desejoso de que a realidade seja real, a fotografia de uma fotografia aparente – aparências.

GATO DE SCHRÖDINGER

A vida – a de Frederic inclusive – é uma caixa preta em que estamos sem nunca saber realmente se existimos ou não. Somente quando essa caixa é aberta – e ela raramente é aberta – é que saberemos que a resposta para a nossa pergunta não faz o menor sentido.

DIABRETE

Só faltam dois! Ai, que emoção!

PRIMAVERA

Qual é o seu problema?

UIRAPURU VOYEUR

Isso aconteceu comigo. Eu solicitei ao padeiro 10 pães quentinhos, e ele disse que nem todos os 10 estariam quentinhos. “Mas quantos estarão” – perguntei. Ele disfarçou, fingiu que não entendeu a pergunta, falou que agora usava um novo tipo de fermento. “Certo, mas vou querer dez pães quentinhos”. Ele esboçou uma fisionomia perturbadora, não era o tipo de fisionomia que vemos em pessoas que são obrigadas a mentir para não se comprometerem.  Ele parecia mesmo ter ódio dos pães, os pães já não eram mais um meio de expressão, era como que a sua felicidade perdida para sempre. O próprio pão era falacioso, porque assim também era o fermento.  Não posso provar, mas acredito que ele já não confiava mais no fermento. Sua vida pessoal também devia estar abalada, com problemas familiares atrapalhando sua atuação profissional. Eu já estava quase desistindo de perguntar, mas ele, acabrunhado, revelou que 7 pães estavam quentinhos e que os outros três ele não iria esquentar, mas que eu poderia levar de graça, se quisesse. Ameacei-o de morte caso ele insistisse em me fazer levar três pãezinhos de graça. Ele fez que não ouviu. Cumpri a ameaça.  Ele continuou fazendo-se de morto. Fui arrastando-o para fora da padaria, deixando no chão um rastro escarlate de nostalgia. Quando eu saía com o corpo, do qual pretendia livrar-me tal como vi num filme de serial killer (esses filmes ensinam umas coisas sujas para a gente), deparei-me com um detetive, que ficara sabendo de um crime hediondo nas dependências. Informei que desconhecia o incidente, mas, vexado por não ser útil, ofereci-me a prestar esclarecimentos sobre outros assuntos, se assim fosse do seu agrado. Fui levado à delegacia a fim de ser interrogado, mas voltaram com o assunto do homicídio macabro, e queriam me ouvir como testemunha.  Depois de algum tempo, quando finalmente perceberam que eu nada sabia, fui liberado. Foi um momento tenso, pois pensei que iriam me perguntar do cadáver que eu levava comigo e, sem saber mentir, seria obrigado a revelar a incompetência do padeiro e talvez até mesmo detalhes constrangedores de sua vida conjugal infeliz. Uma vez que me livrei do corpo, voltei à padaria, a fim de recuperar os pãezinhos que lá deixei. Agora dois detetives lá estavam fazendo perguntas indiscretas. “Tudo o que eu tinha a dizer, já disse na delegacia”, revelei, tentando ser enérgico. Mas eles não gostaram do tom com que eu pronunciei essas palavras (lá sustenido) e fui detido por desacato à funcionário público fazendo exercício na profissão (umas flexões de braço, parece). O delegado não gostou de me ver duas vezes no mesmo dia, e quis fazer mais perguntas sobre a história dos pães. Porque já estavam sabendo até que o padeiro havia recusado a esquentar num microondas os pães de um freguês, pode isso? “Sim, isso aconteceu comigo, inclusive”, achei por bem não omitir. “Também aconteceu com quem estamos procurando”. “Será que posso ajudar?”. “Não sei, você viu alguém suspeito, alguma conversa estranha com o padeiro?”. Resolvi descrever a mim mesmo para que produzissem um retrato falado (nunca ninguém fizera o meu retrato antes, era uma oportunidade única), e não seria um ato leviano, já que eu fora mesmo a única pessoa que conversara com o padeiro naquele dia. O rosto ficara bem parecido com o meu, o que prova que sou bom fisionomista. Já o corpo, mais parecia o do Schwarzenegger. “Não será difícil encontrar esse brutamontes”. – falou o delegado entregando o retrato para dois policiais. A coisa foi tão rápida e ele parecia tão agitado que não tive coragem de pedir uma cópia do retrato para mim.  No dia seguinte encontraram o brutamontes, que no entanto negou a autoria do crime.

DIABRETE

É isso aí Fre...

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Estou na superfície lunar. Ano do rei posto. Viagens no tempo também estão entre meus dons. Vocês podem me ver sorrindo pelo telescópio? Não? Amigos, eu voltarei. Eu voltarei, “Domotiulo”.

This entry was posted on domingo, 28 de fevereiro de 2010 at 08:49 . You can follow any responses to this entry through the comments feed .

2 comentários

Gostaria de saber se ainda existe alguem ainda movimentando esse Blogge

24 de abril de 2016 às 14:31

gostaria de saber sobre voces

24 de abril de 2016 às 14:34

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