Ela sempre havia sofrido de insônia mesmo. Naquela noite estava pior, é verdade, mas já vinha desconfiando que aquele olho lavado em sangue, projetado numa imitação exagerada do Marty Feldman, e principalmente o fato de que era só o direito, sinalizava não tratar-se de conseqüência da insônia, a qual deixara o olho esquerdo meramente estriado de nervuras vermelhas, cansado.

Mas tinha a solução para o problema. Óculos escuros.

Não queria usar medicação, para não participar dessa engorda vil da indústria química e farmacêutica que reina soberana em nossa sociedade enganada. Restavam-lhe os óculos escuros e, é claro, suportar a dor. O mais difícil, porém, já estava resolvido, que era não deixar os outros desconfortáveis com seus problemas. Não que ela fosse altruísta mas era, justamente, uma pessoa amarga.

Aquelas ruas noturnas mostravam-se criminosamente mal iluminadas, mas o sóbrio terninho preto bem como seus cabelos escuros a mesclavam com as sombras. Não se ouvia o toc toc dos saltos altos ecoando pelos paralelepípedos, a chamar atenção para sua presença; ela havia desistido de andar de saltos sobre paralelepípedos faz tempo. Um observador sagaz deduziria daí que a vaidade não estava acima do seu egoísmo. Mas a verdade era que o seu jeito de ser estava acima da vaidade: ela era uma sabotadora contumaz de observadores sagazes.

Começou a garoar precisamente quando ela chegou na mansão que se projetava como da clareira de um bosque, imponente, toda acesa, contrariando os hábitos da vizinhança de acertar seu ritmo circadiano com o Sol. O suposto dono daquela propriedade tinha se rebelado contra a perfeição indomável do cosmos há muito. Quando o Sol queria dizer atividade, ele se fazia de morto. Clichê assim.

À noite ele se arrastava apesar do sono, para contrariar. O resultado de décadas de tanta rebeldia é que ele estava morto. Lá se divisavam a van funerária parada em frente à casa e todo aquele monte de carros dos sanguessugas entupindo a rua. A leitura do testamento certamente já havia sido feita, mas o que lhe importava era chegar para o discurso do padre. Não se pode dispor em um testamento quem não é titular da herança. Ela também queria dar uma última olhada nele antes do fechamento do caixão.

De fato. Ele estava bonito ainda, embora muito pálido e emagrecido. Contudo, do semblante emanava paz; as mãos se achavam cruzadas sobre o colete do terno preto, fechado sobre a gravata vermelha - paradoxalmente, sua indumentária favorita. Ela nunca cogitara vê-lo em posição de oração; aquela era a mais próxima que ele poderia chegar de uma certa prosternação, os joelhos muito retos, muito longe da genuflexão, o dedo médio da mão por cima levantado, bem erguido como se o espasmo cadavérico tivesse ocorrido ao quebrar-se o dedo desafiando a resistência do osso. Tão ele isso. Num último ato de repto às leis naturais, ele finalmente esconjurou a lei da gravidade e se atirou do telhado. Pior era ser enquadrado na psicologia comum e reputado como suicida.

O agente fúnebre fizera um bom trabalho de reconstrução do crânio. Ela estava tão absorta na contemplação dele que não se apercebeu do intrigamento levantado por sua presença. Primeiro ela entrara do saguão para a sala adjacente, transformada em velório, apenas vagamente notando a surpresa da família e amigos com o ingresso da estranha; sua atenção foi monopolizada pelo tapete no corredor formado entre as alas de bancos da platéia, o qual desembocava no caixão suspenso em frente a um tablado improvisado. O padre já se postara no mesmo, atrás de um altar, pigarreando para ela se tocar de que estava atrasada. Mas sua imersão em recordações a manteve alienada. Nem percebeu que as pessoas a olhavam com indisfarçável ansiedade. Ela era bonita sim mas não só isso. Era inquestionavelmente parecida com o defunto. A versão feminina dele. Por fim, acomodou-se em uma cadeira que sobrara a um canto, pensando que o falecido certamente teria preferido sentar em cima do altar, já não surpreendendo mais ninguém.

O padre tinha um papel nas mãos listando alguns itens que devia revelar à platéia, incumbência deixada pelo falecido dentro de um envelope devidamente endereçado e lacrado antes da queda livre.

- Frederic queria que todos ficassem sabendo que seu testamento é nulo, já que ele não era o dono da mansão e que, na verdade, não tinha posse alguma em seu nome, mero administrador do patrimônio da irmã gêmea. Que ele enganava todo mundo por ser um homem perverso e vazio, e que nunca se sentiu mal com isso, apesar de esforçar-se nesse sentido. Que num último exercício de reflexão e contrição, ele não conseguiu se arrepender ao lembrar de quão facilmente as pessoas aceitavam a farsa, tendo prazer em ser enganadas apesar de todos os sinais que ele fornecia de ser um grande mentiroso. Que por ser este o traço supremo do seu caráter, é possível que o embuste consista em que ele não era tão embusteiro assim. E que todo esse funeral, e a morte, sejam uma farsa.

O padre fez uma pausa olhando para a audiência, no que alguém aproveitou para reclamar com a pessoa ao lado o teor fúnebre do discurso, dada a farsa toda. Aparentemente esperava algo mais surpreendente da parte de Frederic. A desculpa seria que a morte é que o havia tomado de surpresa, após ele ter finalmente se convencido de que ser anti-convencional é vida; perdera a última salvaguarda do sistema para um apóstata renitente de sua lavra. Mas só quem sabia disso era Amaranta, que olhava para o relógio, aguardando o momento de retomar a posse dos seus bens. Só ela sabia o poder que a morte tem de tornar iguais todas as pessoas, mesmo um excêntrico de profissão como seu gêmeo.

Ela caíra gravemente enferma, mas era seu irmão que morria. Sangue escorreu-lhe pela face do olho saltado e hemorrágico. Mas como ninguém via além dos óculos escuros, presumiram que sua tristeza era tão devastadora que ela vertia lágrimas de sangue. No enterro de Frederic nada poderia ser insólito demais, ou incoerente demais. Ele tinha conseguido causar essa transformação nos outros ao seu redor. Não se incomodariam, por exemplo, se o padre começasse a fazer striptease lá na frente como último ato de homenagem ao morto. E bem que o padre estava tentado, já que tinha convivido com Frederic. Mas Amaranta se levantou, subiu no tablado, arrancou a carta das mãos do clérigo e disse:

- Como vocês devem ter percebido pela enorme semelhança entre Frederic e eu,  sou a irmã gêmea que é mencionada em sua última carta - ergueu o papel como se isso provasse o conteúdo afirmado por ela. - E eu gostaria que todos se retirassem pra que eu possa começar a reorganizar a casa do jeito que a deixei antes de passá-la ao meu irmão.

Antes o exterior da mansão de três andares era de pedraria. O material de construção se caracterizava por pedras alternadamente brutas e lavradas, adornadas por uma varanda enfeitada, pórtico e nichos de janelas com vitrais. A fachada era ornamentada por várias séries de cornijas intrincadamente entalhadas por toda a extensão dos três andares.

O interior abrigava oito lareiras de mármore e uma ampla escadaria em espiral feita de carvalho envernizado. O mural no teto da sala de estar era uma reprodução exata do famoso Gabinete Rosa de Luís XIV. Lambris de mogno percorriam todo o vasto salão de jantar, onde também se viam um bufê e um armário embutido com pratarias a cobrir uma parede inteira.

A sala de música localizada no segundo andar sediava prateleiras com livros e uma porta de vidro biselado que conduzia ao solário, no final sul do edifício. Ainda nesse pavimento, havia sete quartos; o sétimo, ou Quarto Vermelho, era ricamente aparelhado com molduras de madeira laqueada adornadas. As paredes e teto do banheiro da suíte principal eram recobertos do que parecia ser uma tela a óleo de Botticelli.

Já o terceiro andar possuía três quartos adicionais e uma sala de bilhar de teto abobadado, compreendendo o comprimento da sala de música no primeiro andar.

Mas após a reforma de Frederic, nas pedras ornamentais do exterior tinham sido coladas folhas de bananeira, onde se pregaram bonequinhos de vodu da feira de Nova Orleans. Em cima do telhado um Ovni fora pousado fazendo propaganda de uma loja de cuecas inexistente, nos anéis de Saturno. Os vitrais das janelas tinham virado letreiros em neon ostentando frases como "Eu não vou chicotear a sua bisneta";  "Parece que o iogurte do orangotango ainda não foi roubado"; "Valentim nasceu no campo e logo aos nove anos começou a se prostituir"; "Ontem eu peidei por duas horas seguidas". Também havia um letreiro com o texto integral de Guerra e Paz, o único livro que o erudito proprietário nunca tinha conseguido terminar de ler. No lugar das cornijas, cobras vivas eram amarradas e trocadas semanalmente, antes que seus corpos em decomposição começassem a feder, já que não eram alimentadas.

As lareiras haviam sido aterradas com sucrilhos e na escadaria cacos tinham sido incrustados para que ninguém viesse a pisar ali descalço, estragando o projeto original. No mural da sala de estar o Inferno de Bosch havia coberto a reprodução dos padrões do Palácio de Linderhof, inabilmente pintado por um garotinho de três anos de idade. Frederic o contratara para executar a pintura dando ao garoto uma foto 3x4 da Mona Lisa a fim de inspirá-lo. O resultado foi o Inferno do artista holandês povoado de personagens exclusivamente com a cara da Gioconda (o efeito era realmente muito mais aterrador). Os lambris do salão de jantar estavam poluídos por propaganda eleitoral, em que Frederic tinha gastado metade da fortuna, sem nunca se candidatar a nenhum cargo político. Ao invés das baixelas do armário encontravam-se cebolas picadas, aparelhos de barbear, bandaids grudados em esfirras, a escultura de um morcego sendo executado na guilhotina e uma gaiola em que Frederic prendia folhas de mostarda. Os compartimentos atrás das vidraças haviam sido transformados em estufa, onde rolos de papel higiênico eram guardados.

O vidro biselado da porta da sala de música fora substituído por lâminas de lata de Refrigereco, e contra a lente do telescópio no solário Frederic havia colado uma foto de seu dedão do pé, tirada de uma distância de 5000 pés, o resultado final sendo alterado com photoshop para dar a impressão de ter sido fotografado a apenas meio pé de distância.  Os sete quartos do segundo andar ele deitou abaixo e montou um mini-circo de horrores onde um carrinho elétrico passava por anões comedores de gorgonzola, o homem-perna, um ovo de galinha com barba, um bicho-preguiça com elefantíase, um camundongo com síndrome de down, pinguins com tatuagens e um rinoceronte tetraplégico; aliás, estavam reclamando seus salários na Justiça. Uma equipe de cientistas fora contratada para construir um vulcão no Quarto Vermelho, que tendo entrado em erupção no réveillon havia deixado um buraco no teto que era para ser uma tela de Botticelli.

Nos três quartos adicionais do terceiro andar havia agora, respectivamente ou não, uma piscina de piolhos, um depósito de sorvetes em temperatura ambiente e uma agulha, reservada para o maior aposento da casa. Na sala de bilhar, Frederic dormia, preparava seu alimento numa cozinha improvisada de camping e tomava banho num chafariz transportado do jardim para lá. Ali também havia um piano de cauda que ele usava para assoar o nariz e uma cadeira de balanço, com a qual praticava esgrima, karatê, boliche e escotismo. 

Era-lhe penoso manter esse estilo de vida, mas Frederic não conseguia ser diferente. Amaranta recriminava a insanidade do irmão, mas ela mesma não teria voltado ali para reverter o estado da casa não fosse por causa de uma noite de insônia.

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2 comentários

AmarAnta... AmarAntes... AmarDepois. O importante é amar. Mas e o Exportante também é amar?
Venho aqui não para anular ou confirmar os detalhes ou contar a história desta pseudo-vida, mas mesmo esta morte ou este rito de passagem que foi realizado veladamente por aqueles que estavam próximos, na distancia de um click de mouse ou de um acesso de uma pagina para outra.
Mas o mais triste é que ninguém reclamou o corpo. Ninguém reclamou do corpo. Tão pouco fizeram elogios ou comentários de lisonja. Mas agora também será tarde.
Não há como não recordar destes eventos especialmente, pois era eu o astro convidado espectador e coadjuvante desta peça macabra arquitetada por uma mente já um tanto debilitada e fragmentada.
Alguns poderão dizer que foi devido a ter se multifacetado, ou por ter hepatite, ou por estar tomando medicação pesada, ou por ter contraído meningite, que se agravou em um colapso nervos que resultou em uma amnésia, ou simplesmente por que casou ou porque cansou de tudo.
E é claro que no atestado de óbito esta escrito: verborragia cerebral. Vamos seguir em frente.
Claro que pode ser isto um apenas umas das afirmações acima, não há mais como saber.
O rei esta morto. Vida longa ao rei. Mas tudo agora é passado vamos continuar sempre à frente.
Mas vamos virar a pagina desta HISTÓRIA? Claro que não, pois é de história que somos feitos e estamos sentados em uma pilha de eventos que chamados de passado e queremos não acreditar que ele seja realmente importante. Mas saiba meu Delirium. Tudo não passa de Sonhos numa noite de verão. Bardos vem e vão, Ame apenas as palavras e não o interlocutor. Mas agora é tarde. Não é.
Minha Irma gêmea de alma gêmea realizou todos os procedimentos com maestria, regendo cada olhar com sua batuta mental. Mas agora me ocorreu, qual é mesmo a palavra para descrever uma coisa que faz com que as pessoas ou coisas quando não sejam mais as mesmas?
Mesmo sabendo que o nos torna igual às outras pessoas é justamente achar que somos totalmente diferentes um dos outros.
Claro que para algumas mentes não esclarecidas que continuam a se manter na obscuridade ou seria na obscura cidade das trevas. Que como tento um véu uma límpida mortalha o impedia de não ver aquilo que não é obvio. Ver para crer, pagar pra ver, acreditamos demasiadamente neste sentido.
Mas qual o sentido de tudo isto? Para cima? Para Baixo? Para os Lados? Na Diagonal?
Qual é o real de tudo isto?
Mesmo que poucos entendam que o casarão em questão poderia ser realmente um local, ou um ideal de local, mas podemos dizer que poderia ser um arquivo morto, ou um CPU ou apenas uma caixa contendo como pastas de diretórios nomes de locais de uma casa. E em cada uma delas contendo quase todas as linhas escritas nesta rede neural que compunha maneira de ver e de arquivar as coisas este ser que por mais de um dia pode ter se chamado Frederic, mas na verdade ele não se chamava Frederic os outros é que o chamavam de Frederic. Pois pra ele, ele teria outro nome tido David ou Daniel. Mas o que é um nome afinal? O que é uma letra "O"?
Não há como definir uma pessoa por um título ou um rotulo algo que de indícios de sua natureza apenas pelo próprio nome; como por exemplo. Oliveira, Câmara, Marmelo, Oliveira, Pinheiro.
Mas uma letra amais em um nome muda tudo.

4 de março de 2010 às 17:29

O rei esta morto. Vida longa ao rei. Súdito rei deste castelo de cartas e Emails.
Tento sempre se lembrar daquele Superalterego; altivo e sarcástico e não este ser macilento e menos mavioso que outrora fora mui indômito. Mas fora subjugado por uma mente que normalmente não poderia acompanhar a velocidade daquela minha antiga mente (ops) daquela antiga mente. Estou começando a confundir obra e criador. Questões do ID ou IP?
Dizem que um homem nunca deve viver o suficiente para ver o próprio filho morrer.
Pois bem eu entendo isto pelos dois pontos de vista. Qual é a palavra para quando a pessoa resolve que apenas uma parte dela não vai mais viver? Suicídio? Meiocídio? Tercídio? Quarticídio? Chacina? Mas a grande verdade meus caros é que foi um genocídio, o local exato? Entre o lóbulo frontal o peridional, Lobos Parietais ou algo haver com área de Wernicke.
Não sou doutor, mas este tal de Wernicke se estiver ocupando alguma área cerebral, deve pagar aluguel. E se estiver ocupando deve ser ligado a movimentos extremistas e logo será pedido à reintegração de posse. Mas sei que ali morreu um mundo. Melhor morreu um Multiverso.
Mente criadora e seminal, quase um sumo rei, se bem que Frederic gostava de ser chamado de Sumo de um Rei. Afinal vai entender este Lúcido ser. Ele era o senhor de seu mundo.
Mas porque exatamente tudo isto. Tudo por causa de uma noite de insônia? Não é claro que não, pois tudo é como um sonho as avessa, a mente dorme e o corpo sente. Foi exatamente isto.
Poucos entendem que a isto damos o nome de NOITE NUM SONHO DE VERÃO. Logo poderá ser possível encontrar esta fábula na neuronet, não por causa das neuroses, não, não pensem desta maneira. Mas em breve. Tudo ficará claro, tão sóbrio quanto um padre.
Posso sentir ainda na ponta dos dedos o olor das velas e o sabor das cores da única planta presente.
Frederic era contra violência e morte seja ela de qualquer espécie. Como ele havia lido uma frase de Jeremy Heathcliff. “Flores colhidas ao amanhecer estão mortas ao anoitecer”.
Mas quem foi este finado? Poucos sabem sua trajetória. Quem sabe Rabsaqué apareça para esclarecer. Acredito que isto ocorrera um velório sobre o ponto de vista de Rabsaqué.
Seria ele uma manifestação mental infesta-se à consciência indiretamente, sob forma da imoral, como um conjunto de desinterdições e deveres, e por meio da deseducação, pela produção do "eu desideal", isto é, da pessoa amoral, boa e desvirtuosa. Manifestação. Manifesto. Testamento. Testemunho. Na verdade só vim até aqui para testificar.
E relembrar uma taça de vinho e um pacote de batatas fritas em homenagem a Frederico.

4 de março de 2010 às 18:36

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