Introdução  

Posted by Diadorim

“O meu tempo passou. Gostaria de deixar estas páginas a alguém, o testemunho do que foi cumprido. Mas por qual motivo? Para quem? Nós sulcamos os meandros da história. Nós somos sombras que as crônicas não mencionarão. Nós não existimos. Escrevi para mim. Só para mim. A mim dedico e deixo este diário.”

 

Luther Blisset, ‘O Caçador de Hereges’

Reintroduzindo  

Posted by Diadorim

Este blog pretende ser como um RPG de fórum, no qual um começa a história, o outro dá continuidade e assim por diante. 

 Somos em 4: eu, Ananda; o Sávio, Heathcliff, Frederic, entre vários outros; Carlinhos, Jean Jacques Sans-Cervell; e Fábio, Domitilo Kasparkazu e todo o elenco mais surrealista da rede. 

Inicialmente o blog era pra ser a epopéia de uma personagem, eu, que interagiria com os personagens do Sávio, do Carlos e do Fábio, os quais também construiriam a minha história à medida que fossem falando deles mesmos.  

O leitmotiv era pra ser múltipla personalidade, que o Sávio e eu a temos; embora o Carlos e o Fábio se mantenham fiéis a uma essência, já foram usados pelo Sávio e eu como personagens nossos.  

Em homenagem à paciência infinita deles, por permitirem a tomagem de seus santos nomes (ainda que não em vão) eles darão o troco agora, fingindo ser eles mesmos.  

Ficamos sobremaneira empolgados que depois de um longo e tenebroso inverno enfronhado em aventuras muito mais radicais que as nossas (Carlos, Fábio, eu) o Sávio retorna à casa cheio das mais variadas e ricas experiências pra todos nós.  

Então, agora o jogo mudou: nós seremos ele, e ele será todos nós. 

Obs: algumas das afirmações acima são falsas. Descubra quais.

 Aprenda através das nossas mentiras, a mais pura verdade.

Ano do Rei, missiva 117, Entre os selenitas.  

Posted by Fabio

"Meu objeto não está completo e, para completá-lo, é necessário que eu diga com que olhar, se eu fosse um outro, eu veria um homem tal como sou"
(Jean-Jacques Rousseau, "Rousseau, juiz de Jean-Jacques , p.15)

A máscara do homem invisível

Soube que estavam à minha procura. Perguntavam por um sujeito destro, naturalmente cético, que apreciava o vôo das corujas e se abstinha de cachaça durante todo o verão. Era provavelmente assim que eu era visto a olho nu, por muito que eu me esforçasse (e isso me valeu uma ciática) em contrariar as expectativas meteorológicas e as previsões dos astrólogos. Afinal, convenhamos: foi-se o tempo em que bastavam as aparências para enganar; hoje, para ludibriar, é preciso, antes de tudo, ser honesto, verdadeiro, é preciso estar imerso em águas translúcidas. Quão repugnante é o tom "confessional", bem sei, mas ponha-se no lugar da platéia. Nós, que não somos grandes homens, compassivamente vos interrogamos: "que fareis, quando tão somente a mentira vos parecer verossímil e não puderdes mais escolher?" A verdade é delirante e o ator, esse parasita das sombras, semeia a fantasia e o sonho em regiões inexploradas do falso; ocupa, desocupando, o espaço de outro corpo, de um corpo incorpóreo, para depois, fantasma assombrado por fantasmas, cuspir o que sobrou de sua alma, profeta do limbo dos heróis.

- Você por acaso viu passar por aqui um sujeito cético, destro e abstêmio?

A pergunta fora dirigida, conforme informação segura do detetive particular que contratei para seguir aqueles que me seguiam, a um rapaz em coma alcoólico que disse (ele saiu do coma apenas para responder a pergunta) que o sujeito procurado era ele mesmo. Um canastrão, decerto, o que não impediu que a notícia se propagasse como a um vírus faminto. Quem, neste mundo de pós-lucidez não acreditaria numa farsa tão ordinária, a beleza do homem comum em coma, embebedado pela sua vaidade? E o ator hoje é obrigado a forçar a natureza, a mostrar um lado oculto, como se fosse a lua transtornada, a fim de receber o infame aplauso. Quem nunca se acostumou a discernir a franqueza da engabelação, tende a tomar uma pela outra, e a preferir a segunda, porque, mal educado nos prazeres da ilusão, encontra no cotidiano acinzentado um doce escapismo. No ano do rei, já não existe puro artifício, existe o reality show, em que a história fora da história parece tão mais estapafúrdia, que resta à ficção ser meta-ficção e comentar, resignada, as peripécias incontidas da vida real.

Confundido com um canastrão em coma! Deixa estar, não foi de todo ruim a embrulhada, vez que até me tornou, aparentemente, alguém mais complexo, mais rico e matizado. Agora perguntavam por um sujeito cético, destro, abstêmio...e ébrio.

Quando a busca pela verdade é o último refúgio do logro, só nos resta sonegá-lo. Porque sempre existe algo a perder e, às vezes, quando se perde é exatamente quando se ganha. Houve um tempo em que fui considerado um estereótipo. O estereótipo do não-estereótipo. Eu possuía um arco dramático, sustentava um intrigante dilema moral e era dotado de uma personalidade distinta que, nem por isso, deixava de ser contraditória. Não é nada fácil ser contraditório. É preciso freqüentar com a mesma desenvoltura a luz e a escuridão, a sanidade e a loucura, a vida e a morte. É preciso buscar estoicamente o prazer e aleatoriamente a ordem. É preciso coragem para temer e ter medo de ser herói. É preciso ter força para fraquejar, é preciso ter fé na descrença. Mas tudo o que eu tinha era um arco dramático e um intrigante dilema moral, e com isso não podia ir adiante sem me perder. E o que perdi, em seguida, foi o arco dramático. Fui abandonado na página trinta e seis, sob o pretexto de que o meu desaparecimento iria trazer repercussões decisivas para todos os demais. Deveria eu me entregar definitivamente ao ostracismo ou recomeçar outra vez, simulando a amnésia coletiva em torno do meu nome? Esse o meu risível dilema, que me ocupou por bons e, com o olhar do distanciamento histórico, até mesmo saudosos dezenove segundos de uma fria manhã de setembro. Após este breve, mas intenso, matutar, decidi deixar que minha decisão decidisse por mim. Decidi que não decidiria bulhufas, que não teria mais dilemas nas frias manhãs de setembro, nem características peculiares, nem seria mais o estereótipo sonhado pelos meus autores. Não me sobrara nada, é verdade, mas eu me sentia mais parecido comigo mesmo.

Nessa época ganhei um novo papel. Fui convidado para interpretar Epimênides em seus anos áureos. Epimênides tinha sido abandonado por toda a população de Creta, que não suportava mais suas lorotas demonstradas em modo geométrico, e estava agora sozinho na ilha. Foi quando fez um "mea-culpa" que não disfarçava o despeito, proferindo sua célebre frase sobre os habitantes de Creta serem todos uns mentirosos. Eu ainda adotava o método de Stanislavski, e queria que o meu público acreditasse na veracidade do personagem, por mais que ele não fosse verossímil. Mas minha cota de fé na humanidade era limitada, e de Epimênides eu só conseguia duvidar. Ele não era provável, o que ele dizia era algo que, evidentemente, ele não poderia dizer. Se Epimênides mente, é uma mentira que ele mente, logo, ele não mente. Mas se Epimênides não mente, como pode alguém que não mente dizer que mente?  O direito de mentir é sagrado, mas e o de se declarar um mentiroso? E o direito de se queimar no inferno da auto-referência, ardendo sob o som crepitante das labaredas ilógicas? Epimênides ousava dizer "estou mentindo agora", dando voz a uma quimera sorridente. Usava a linguagem para exprimir algo que a própria linguagem duvidava que pudesse exprimir. Eram dois Epimênides, duas Cretas, dois universos. Havia o Epimênides mentiroso e havia o Epimênides que dizia "eu agora". Eles podiam viver vidas separadas, independentes. Mas por força de alguma desarmonia pré-estabelecida os mundos paralelos, em alguns momentos mórbidos, se perpendicularizavam, os Epimênides se fundiam num só e sua própria existência ia às favas. Como representar o que não existe nem pode existir?

Talvez haja dois de mim mesmo, talvez mais que dois. Talvez eu esteja mais próximo de mim em algum multiverso distante. Talvez o meu "eu" mais egóico esteja fora de mim, me arrastando para dentro dele. Seria possível que meu mundo interior fosse experimentado além de minhas – possíveis – várias instâncias? Seria possível fugir das amarras da finitude e dispersar minha individualidade nos tentáculos do Grande Todo?

Anton von Hulloder estava mentindo. Não queria subtrair sua alma. Epimênides era uma espécie de modelo a ser imitado. O que ele dizia não era verdadeiro, nem falso. Era um ator em surto esquizofrênico que fingia que fingia, fingia que era o simulacro de um fingidor fingindo que não fingia. Epimênides fora a última farsa de Hulloder, e ela o fatigara sensivelmente. Sempre havia se dedicado aos seus fantasmas com afinco, ligando-se a eles umbilicalmente. Depois de completado o trabalho, continuava vivendo vida dupla, e só participava de rituais de exorcismo (ele contratava os serviços de um amigo que era sacerdote free lancer) quando do início de uma nova empreitada dramática. Numa ocasião, chegou a levar dois anos de vida vegetativa para interpretar um coqueiro no Havaí, para um público de turistas dinamarqueses. Em outra, quando fazia Otelo, drogava a mulher com psicotrópicos que a deixavam com comportamento ninfômano. Engordara trezentos e sete quilos para encarnar um lutador de sumô e reduzira um metro e oito centímetros em sua altura para bem compor um anão. Hoje, claro está, Hulloder não faria mais isso. Já não queria mais convencer, queria um papel que pudesse fazer o público pensar ser ele qualquer coisa, menos aquilo que ele estivesse a representar.

Só havia uma possibilidade para Hulloder e é muito oportuno dizer agora, justo agora, que a oportunidade acabara de chegar. O cineasta Nereu Raviola ficara encantado com as histórias de vida do ator, e as queria levar para as telas. E assim, depois que o desafiante trabalho fora recusado por Jack Nicholson, Al Pacino, Billy Crudup, Julia Roberts e Marlon Brando (a recusa deste fora psicografada), Raviola propôs a Anton von Hulloder o papel de sua vida. Embora de início ele também o tenha recusado, alegando não ter o physique du rôle adequado, as dificuldades financeiras, aliadas às reflexões retro-mencionadas, o fizeram aderir à proposta. Hulloder seria agora o objeto de sua investigação, seria ele próprio o alvo de suas profecias.

Ano da Marmota, Esquete nº 608, Um Bistrô à Beira-Mar  

Posted by Fabio


BRÓCOLI - Ai, Domitilo, se demorar muito é melhor a gente deixar para esperar mais tarde.

DOMITILO – A eternidade é apenas um breve instante diante de nossa espera por esse garçom enigmático. 

BRÓCOLI - Então, Domitilo, já está ficando tarde...

DOMITILO - Neste caso, esperemos apenas um pouco mais.

BRÓCOLI - Hum. Será que não é melhor a gente jogar essa mensagem do banheiro fora, Domitilo?

DOMITILO - Que mensagem?

BRÓCOLI – Ai, Domitilo! (entrega a mensagem para Domitilo)

DOMITILO - Não tinha reparado nela. Estranho, porque o tom suplicante não revelou sutileza. Não sei se jogá-la fora é a melhor solução, mas decerto será melhor do que não jogá-la.

BRÓCOLI - Mas aí a gente não vai deixar outra mensagem bacana no lugar, Domitilo?

DOMITILO – Evidente que sim, Brócoli, caso contrário estaríamos exibindo despudorada sordidez e teríamos de testemunhar, aflitos, o desgastante processo de corrosão de nossa consciência moral.  Coloque aí: "Não espere por mim, encontre-me no banheiro, onde estou há dois dias".

BRÓCOLI - Mas, Domitilo, nós já estamos esperando esse bolorento sair do banheiro há mais de uma semana, Domitilo, é muito mais falta de ética mentir desse jeito, Domitilo!

DOMITILO - Não se preocupe, Brócoli, ninguém além de nós sabe que esses dias não constam do calendário. 

BRÓCOLI - Ai, Domitilo, você só me mete em enrascadas com essa sua ética pessoal, Domitilo.

(Dois dias depois)

BRÓCOLI - Ai, Domitilo, estou com uma baita preguiça de não fazer nada, Domitilo. Será que eu posso tirar um cochilo agora? Deixa, vai, Domitilo, eu prometo que acordo sem fazer barulho.

DOMITILO - Não, não creio que seja prudente silenciar. Isto aqui não é um hospital, não é uma biblioteca, e talvez não seja sequer um cemitério.

BRÓCOLI - Eu já estou até ficando com fome, Domitilo.  Acho que é melhor fazermos uma pausa para um lanchinho e voltarmos depois.

DOMITILO - Mais tarde, Brócoli, mais tarde. Por enquanto, vamos nos concentrar apenas nos fatos que temos ao nosso dispor. Quando chegar o momento, poderemos apelar também para as evidências.

BRÓCOLI - E quais são os fatos, afinal, Domitilo?

DOMITILO - Deixe que eu faça as perguntas, Brócoli, você não é maduro o suficiente para se embriagar no mel da dúvida.

BRÓCOLI - Ai, Domitilo, eu quero me lambuzar todinho na dúvida!

ATTILA (Passa sobrevoando o restaurante)

Como é que é!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!?????????

DOMITILO - E depois dizem que Domitilo Kasparkazu é que é um demente irrecuperável. 

BRÓCOLI - Hahahaha, essa foi boa, Domitilo!

Silêncio prolongado.

DOMITILO - Ei, Brócoli!

BRÓCOLI - Que é, Domitilo?

DOMITILO - Você acha que eu tenho dupla personalidade?

BRÓCOLI - Ai, Domitilo, só você para fazer essas perguntas de duplo sentido, Domitilo! Imagine eu ter que agüentar dois Domitilos, Domitilo!

DOMITILO (imitando Brócoli) - Ai, Domitilo! Essa foi boa, Brócoli!

BRÓCOLI - Essa foi boa, Domitilo, dizendo que foi minha.

DOMITILO - Serei eu e ninguém mais? Ó, como saber realmente? (Domitilo começa a chorar e a soltar uivos de emoção) Como saber se o que sei é algo que sei, e não, sabidamente, ilusão de uma mente tão lúcida? Como não saber que o que sei é de fato o que nunca saberei e, sobretudo, como fingir não saber que o que nunca saberei poderia ser, tão somente, o que sempre soube, sem saber? 

BRÓCOLI - Ai, Domitilo, eu é que sei, Domitilo, eu é que sei!

DOMITILO - Eu sou eu? Eu sou?

BRÓCOLI - Era só o que faltava. Agora você vai dizer que se não for você vai ser outro? Ai, Domitilo, só você para não ser você, Domitilo, só você!

(três dias depois)

DOMITILO – Está bem. Vamos esperar apenas até o dia do juízo final. Se o garçom não aparecer, iremos buscar os nossos direitos.

BRÓCOLI - Assim é que se fala, Domitilo!

COBBLEPOTT (que estava embaixo da mesa) – Olá senhores, desculpem o pequeno atraso, tive que almoçar no caminho do banheiro para cá, e o garçom demorou para me atender. Aceitam um aperitivo?

DOMITILO - Infelizmente, não, senhor. Mas aceitaríamos um chá, ou talvez queira trocar os pneus do nosso carro. Trabalhamos com cartão de crédito.

BRÓCOLI - Você não irá se arrepender se aceitar a nossa ajuda, somos muito carismáticos!

COBBLEPOTT – Onde está o carro?

DOMITILO – Nós o estacionamos dentro de uma vala, você anotou o endereço, Brócoli?

BRÓCOLI - Ai, Domitilo, eu bem que falei para a gente colocar só os pneus na vala. Olha o trabalhão que vai dar agora para tirar o carro, Domitilo!

Silêncio prolongado.

BRÓCOLI - Eu bem que falei, Domitilo.

DOMITILO - Você fala demais, Brócoli.

COBBLEPOTT – Aceitam um empanado de casca de banana, senhores?

BRÓCOLI – Que cardápio massa.

COBBLEPOTT – Temos também iogurte de mostarda.

DOMITILO - Esse garçom parece meio abatido.

COBBLEPOTT – Ainda ficarão muito tempo aqui no restaurante, senhores?

DOMITILO – Possivelmente não, já que fui convidado a proferir um discurso elegíaco num funeral.

COBBLEPOTT - Que interessante. Adoro discursos elegíacos.

BRÓCOLI - Ai, Domitilo, esse sujeito deve achar que é feliz.

DOMITILO - Ficaríamos honrados com sua presença. Desde, é claro, que nós também estejamos presentes.

BRÓCOLI - A desonra é uma prerrogativa ignorada pelos arrozes-de-festa.

DOMITILO – Não é uma festa, Brócoli, é um funeral.

BRÓCOLI – É mesmo. E eu fui contratado como carpideira, que massa, Domitilo! Hahahahahaa.

DOMITILO -  Só que eu ainda não sei o que vou dizer. Você tem alguma sugestão?

COBBLEPOTT – Acho que não. Também não sei se vou. Será um momento muito triste.

BRÓCOLI - Pelo menos vamos comer de graça.

COBBLEPOTT - E a que horas será o funeral?

DOMITILO – Se não me engano, cinco horas da tarde de hoje.

COBBLEPOTT - Mas já são sete horas, o funeral já começou faz duas horas, então.

BRÓCOLI - Ai, Domitilo, que falta de consideração fazer o discurso tão longe da platéia!

DOMITILO - Vou ligar para o mestre de cerimônias para ver se estão à minha espera.

Domitilo telefona a cobrar

DOMITILO - Boa tarde, é Domitilo Kasparkazu falando, gostaria de saber se eu já comecei o meu discurso e se a platéia está me aplaudindo de pé.

BRÓCOLI - Ai, Domitilo, será que você não percebe que é óbvio que a platéia está muito empolgada pelo fato de você não ter aparecido?

MESTRE DE CERIMÔNIAS - Mas você não está aqui, Domitilo.

DOMITILO - Não estou! Como assim? Mas eu dei notícias? Aconteceu algum acidente, alguém está ferido? Há previsão para minha chegada?

MESTRE DE CERIMÔNIAS - É claro que não, Domitilo. Você não vai discursar porque recusou o convite do defunto para fazer um discurso elegíaco, afirmando que isso não seria "massa".

Brócoli se retira sorrateiramente

DOMITILO - É verdade! Agora me lembro! Fico mais aliviado. Mas fique tranqüilo que dentro de vinte minutos estaremos aí para fazer o discurso.

MESTRE DE CERIMÔNIAS - Mas...

DOMITILO - E caso eu chegue antes, não precisa ficar me esperando, eu começo o discurso antes mesmo do horário combinado, sem problemas. Azar de quem chegar no horário.

COBBLEPOTT - Seu chá, senhor.

Cartazes, letreiros, propagandas na televisão:

"Não percam, é hoje: FUNERAL DE FREDERIC SHETAR!!! Cemitério ´Cova Rasa´. O maior evento deste verão. Discursos de Domitilo Kasparkazu, Jean-Jacques Sans-Cervell, Jeremy Heathcliff e Rabanete. Cardápio de primeira (feijoada de cortesia!). Sorteio de uma réplica em miniatura do túmulo de Frederic (com entrada usb) para você guardar de recordação. Banda ao vivo. Queima de fogos de artifício. Galeria com telas originais inéditas do pintor. Menores de 18 anos pagam meia entrada."

BRÓCOLI – Domitilo, eu vou precisar discursar também?

DOMITILO – Fica sossegado, Brócoli. Você só vai precisar dançar em trajes de odalisca no final.

BRÓCOLI – Ai, Domitilo, eu vou querer um aumento de salário, Domitilo.

DOMITILO – Tudo bem, eu vou dobrar o seu salário. O seu trabalho é imprescindível e muito bem feito.

BRÓCOLI – Haaaha, ai, Domitilo, só você para não perceber que eu só atrapalho, Domitilo. Haahaha, ai, quer dizer, ai, Domitilo, ainda bem que você reconhece o meu talento, Domitilo.

DOMITILO – É por isso que você também passará a trabalhar dobrado, Brócoli, fazendo não um, mas dois números de dança.

BRÓCOLI – Ai, Domitilo, eu não tenho dupla personalidade que nem você, Domitilo.

DOMITILO – Tudo bem, então, faça os dois números por metade do seu salário atual.

BRÓCOLI – Hahaha. Ai, Domitilo, você não sabe da maior!

DOMITILO – O que aconteceu?

BRÓCOLI – O que o Clark Kent disse para o Superman?

DOMITILO – Hum, deixe-me pensar. "Se eu fosse você eu gostaria de ser como eu"?

BRÓCOLI – Ai, Domitilo, claro que não. É uma piada engraçada, Domitilo.

DOMITILO – Então ele deve ter dito: "Você é um pássaro, um avião ou o Superman?" E o Superman respondeu: "eu sou o Batman disfarçado".

BRÓCOLI – Domitilo dos meus pecados! Será que você não entende que o Batman não usa a fantasia do Superman, Domitilo?

DOMITILO – Então eu desisto, se não era o Batman, quem mais poderia ser? Joana d'Arc?

BRÓCOLI – Ai, Domitilo, é claro que o Superman não disse nada, porque ele e o Clark Kent nunca estão juntos no mesmo lugar. Hahahaha, não é engraçado, Domitilo, não é engraçado?

DOMITILO – Eu ainda acho que seria mais engraçado se o Clark Kent dissesse para o Batman que sua fantasia pegou fogo.

BRÓCOLI – Ai, Domitilo, vai ver então que era a Joana d´Arc mesmo.

DOMITILO – Ou talvez o Superman estivesse vestido de Joana d´Arc e o Batman tivesse dito que ele é um avião, nós nunca iremos realmente saber, Brócoli.

BRÓCOLI – Hahahaha! (Brócoli sai à procura de alguém para ouvir a piada: "o que o Batman disfarçado de avião disse para o Superman disfarçado de Joana d´Arc?" "A minha fantasia está pegando fogo").

Nem sei o que sou. Nem sei o que fui e, agora, nem o que serei. Ah… e nem sei o que escrever – por patético que isso possa parecer. Como escrever aos que partem? Eu só sei o que vivi. (se sei?) E acho que escrever é suficiente (ou : será?)

Você surgiu na minha vida despretenciosamente e depois, tudo mudou, e você continuou despretenço. Nos primeiros encontros, sem eu nunca te ver, eu me assustei – como a criança retardada e paranóica que acha que há um monstro debaixo da cama, quando quem sabe há pó ou uma cueca fedida.

Mas, de fato – tudo mudou em minha vida. Você era outra coisa. Pensava diferente. Escrevia diferente. Sabia diferente. Ficávamos nós e aquele bando de dementes a conversar na internet … e o que eu trocava com você era mais do que palavra, era a inteligência. Não que quiséssemos constituir juntos uma Novelle Heloïse, isso seria apenas romantismo. E pra ser honesta, eu odeio Rousseau (e quem não odeia?). Mas ,digamos que eu te idealizei. E como não? Amar quem se desconhece seja talvez o amor mais verdadeiro. E o mais ingênuo. E o mais idiota. Platonismo de quem está na varanda e joga garrafas com bilhetes na rua , conseguindo , no máximo, acertar alguém na cabeça, sem que o bilhete encontre seu endereço. Mas machucando, ainda assim. E quem mandou o otário passar bem na hora do meu arremesso de peso? Talvez me sinta culpada por isto…

Bom, não vou me colocar tão assim pra baixo. Só digo: amei o que você me mostrou. Amei a tua pele nunca vista como uma leiga: olhei tua paisagem e não sabia como se chamava o sol ; olhei tua pintura e sou uma estúpida com quadros ; olhei, como utopia, tua figura, querendo-a tato, como um revolucionário quer , do sonho, materialismo.

Agora é tarde. São, creio eu, … Bem, não sei que horas são. E é tarde também porque você se foi. Quero dizer, não completamente. Ainda deve haver um seu cadáver fétido pra contar história. E talvez seja ele quem tenha me convidado para o seu enterro.

Pois, como não pensar que você ainda está vivo?

Nunca te vi, nem sei se as fotos deixadas são seu perfil, sua face, seu corpo . E se não são, de quem você usurpou a vida? No fundo, como um fã, eu acho ainda que Elvis não morreu. E o pior de tudo é que acho que ele está é sacaneando (o que no caso de Élvis, seria uma reboladinha, mas no nosso,vai saber?). Sacaneando, a bem dizer, porque não sei nada sobre você. E acredito no seu personagem, na sua verossimilhança. Tenho todos os dados, sei até que você morreu (e nem sou médico ou pai-nosso-que-estais-no-céu). No entanto, nem isso sequer pode ser verdade. Você poderia estar morto e, ainda, eu iria ao seu enterro, vendo alguém na cova, e você rindo , desdenhando ou sei-lá-eu.

Sei-lá-eus. Isso foi o sempre-obtido. Quando achava que me aproximava, nada achava, só mais informações: um primo novo de nome esquisito, Orictéropo; uma avó que Morava em outra cidade; um endereço que não consta em nenhuma lista telefônica - e olha que eu me esforcei pra estar a par de todas, acabei até por fazer uma leve coleção, bibliotequei-a inclusive e, por causa disso, decorei até alguns números aleatórios, acreditando que pudessem ser o seu. E ,de fato, foram, só que sem o fato e sem o ser. Porque não apenas os números não foram, mas nem o ser mesmo foi e ,agora, números se foram, foi-se o ser. Se é que o era, ou fora, ou puta-que-pariu, o verbo ser e o substantivo me embananam toda, apesar de eu adorar bananada. Entende a piada?

Os mortos, os vivos, os mortos-vivos sabem rir? Bom, se souberem, devo estar hilária. Eu, que nem sei se, salvo exagero, estou morta, viva, morta-viva. Por favor, me vê aí uma categoria que eu já nem sei mais de mim. E já nem mais rio.

Puts...

Rio, lembro de quando estava lá e te mandei aquele e-mail, lembra? Nunca estive tão feliz em minha vida. Um e-mail e toda a minha sede de auto-engano saciada. Pois é isto que sempre quis e que acho que sempre queremos – satisfazer as próprias mentiras. E amar você é a maior felicidade por isto - posso ser o que eu quiser. Posso ser a mulher que eu quiser... Contigo já fui tua, santa, já fui a outra,a de ninguém,a de todos, já fui até uma coisa, ou outra, ou qualquer. Pude ser todos os tipos de mulheres e, no fundo, nenhuma delas me foi totalmente (bom, talvez eu tenha resquícios de algumas – é que algumas mulheres são um pouco grudentas, você sabe).

Enfim, mas tenho que terminar.A carta está meio longa e ando com um pouco de preguiça, sabe como é, a vida continua, contudo, as cartas tem data de validade e podem ser prolixas, ou vão pro lixo. Trocadilho besta que inventei agora para pedir que não mande esta para o lugar mencionado acima, afinal, sei lá, talvez ela valha a pena ser lida, vai? Pelo menos minimamente?

Bom, espero só que, onde quer que você esteja… enfim, você está? Já disse que este verbo é filho da puta e confesso que não sei bem lidar com ele e tal… É melhor terminar esta coisa à toa aqui.

Olha, será que você pode me passar seu endereço? Se não for assim, vou ter que te mandar esta carta por e-mail, daí, não será mais carta , mas tudo bem… aliás, não sei se transcendentalmente ela chegará no onde-quer-que-você esteja. Sei lá, em carteiros em confio, porém, por e-mail pode ser que volte aquele negócio dizendo não-sei-que-lá “failure”, sabe?

Enfim, só queria te dizer que se houver um deus – que você fique com ele. E que se não houver, bem , aí fodeu de vez e vejo o que faço. E desculpe a mistura de tudo, estou um pouco nervosa é a primeira e a última vez que te escrevo algo por carta… daí fico meio pra-lá e pra-cá com a lingua, você entende, né?

Bom.Fim.

Atenciosamente (Apesar de eu estar meio distraída hoje e, por isso, perdoe os erros de digitação ou de português)e beijos,

Aquela menina lá

Ps: (não quero colocar nome, vai que me leem – fico com vergonha!).

Ela sempre havia sofrido de insônia mesmo. Naquela noite estava pior, é verdade, mas já vinha desconfiando que aquele olho lavado em sangue, projetado numa imitação exagerada do Marty Feldman, e principalmente o fato de que era só o direito, sinalizava não tratar-se de conseqüência da insônia, a qual deixara o olho esquerdo meramente estriado de nervuras vermelhas, cansado.

Mas tinha a solução para o problema. Óculos escuros.

Não queria usar medicação, para não participar dessa engorda vil da indústria química e farmacêutica que reina soberana em nossa sociedade enganada. Restavam-lhe os óculos escuros e, é claro, suportar a dor. O mais difícil, porém, já estava resolvido, que era não deixar os outros desconfortáveis com seus problemas. Não que ela fosse altruísta mas era, justamente, uma pessoa amarga.

Aquelas ruas noturnas mostravam-se criminosamente mal iluminadas, mas o sóbrio terninho preto bem como seus cabelos escuros a mesclavam com as sombras. Não se ouvia o toc toc dos saltos altos ecoando pelos paralelepípedos, a chamar atenção para sua presença; ela havia desistido de andar de saltos sobre paralelepípedos faz tempo. Um observador sagaz deduziria daí que a vaidade não estava acima do seu egoísmo. Mas a verdade era que o seu jeito de ser estava acima da vaidade: ela era uma sabotadora contumaz de observadores sagazes.

Começou a garoar precisamente quando ela chegou na mansão que se projetava como da clareira de um bosque, imponente, toda acesa, contrariando os hábitos da vizinhança de acertar seu ritmo circadiano com o Sol. O suposto dono daquela propriedade tinha se rebelado contra a perfeição indomável do cosmos há muito. Quando o Sol queria dizer atividade, ele se fazia de morto. Clichê assim.

À noite ele se arrastava apesar do sono, para contrariar. O resultado de décadas de tanta rebeldia é que ele estava morto. Lá se divisavam a van funerária parada em frente à casa e todo aquele monte de carros dos sanguessugas entupindo a rua. A leitura do testamento certamente já havia sido feita, mas o que lhe importava era chegar para o discurso do padre. Não se pode dispor em um testamento quem não é titular da herança. Ela também queria dar uma última olhada nele antes do fechamento do caixão.

De fato. Ele estava bonito ainda, embora muito pálido e emagrecido. Contudo, do semblante emanava paz; as mãos se achavam cruzadas sobre o colete do terno preto, fechado sobre a gravata vermelha - paradoxalmente, sua indumentária favorita. Ela nunca cogitara vê-lo em posição de oração; aquela era a mais próxima que ele poderia chegar de uma certa prosternação, os joelhos muito retos, muito longe da genuflexão, o dedo médio da mão por cima levantado, bem erguido como se o espasmo cadavérico tivesse ocorrido ao quebrar-se o dedo desafiando a resistência do osso. Tão ele isso. Num último ato de repto às leis naturais, ele finalmente esconjurou a lei da gravidade e se atirou do telhado. Pior era ser enquadrado na psicologia comum e reputado como suicida.

O agente fúnebre fizera um bom trabalho de reconstrução do crânio. Ela estava tão absorta na contemplação dele que não se apercebeu do intrigamento levantado por sua presença. Primeiro ela entrara do saguão para a sala adjacente, transformada em velório, apenas vagamente notando a surpresa da família e amigos com o ingresso da estranha; sua atenção foi monopolizada pelo tapete no corredor formado entre as alas de bancos da platéia, o qual desembocava no caixão suspenso em frente a um tablado improvisado. O padre já se postara no mesmo, atrás de um altar, pigarreando para ela se tocar de que estava atrasada. Mas sua imersão em recordações a manteve alienada. Nem percebeu que as pessoas a olhavam com indisfarçável ansiedade. Ela era bonita sim mas não só isso. Era inquestionavelmente parecida com o defunto. A versão feminina dele. Por fim, acomodou-se em uma cadeira que sobrara a um canto, pensando que o falecido certamente teria preferido sentar em cima do altar, já não surpreendendo mais ninguém.

O padre tinha um papel nas mãos listando alguns itens que devia revelar à platéia, incumbência deixada pelo falecido dentro de um envelope devidamente endereçado e lacrado antes da queda livre.

- Frederic queria que todos ficassem sabendo que seu testamento é nulo, já que ele não era o dono da mansão e que, na verdade, não tinha posse alguma em seu nome, mero administrador do patrimônio da irmã gêmea. Que ele enganava todo mundo por ser um homem perverso e vazio, e que nunca se sentiu mal com isso, apesar de esforçar-se nesse sentido. Que num último exercício de reflexão e contrição, ele não conseguiu se arrepender ao lembrar de quão facilmente as pessoas aceitavam a farsa, tendo prazer em ser enganadas apesar de todos os sinais que ele fornecia de ser um grande mentiroso. Que por ser este o traço supremo do seu caráter, é possível que o embuste consista em que ele não era tão embusteiro assim. E que todo esse funeral, e a morte, sejam uma farsa.

O padre fez uma pausa olhando para a audiência, no que alguém aproveitou para reclamar com a pessoa ao lado o teor fúnebre do discurso, dada a farsa toda. Aparentemente esperava algo mais surpreendente da parte de Frederic. A desculpa seria que a morte é que o havia tomado de surpresa, após ele ter finalmente se convencido de que ser anti-convencional é vida; perdera a última salvaguarda do sistema para um apóstata renitente de sua lavra. Mas só quem sabia disso era Amaranta, que olhava para o relógio, aguardando o momento de retomar a posse dos seus bens. Só ela sabia o poder que a morte tem de tornar iguais todas as pessoas, mesmo um excêntrico de profissão como seu gêmeo.

Ela caíra gravemente enferma, mas era seu irmão que morria. Sangue escorreu-lhe pela face do olho saltado e hemorrágico. Mas como ninguém via além dos óculos escuros, presumiram que sua tristeza era tão devastadora que ela vertia lágrimas de sangue. No enterro de Frederic nada poderia ser insólito demais, ou incoerente demais. Ele tinha conseguido causar essa transformação nos outros ao seu redor. Não se incomodariam, por exemplo, se o padre começasse a fazer striptease lá na frente como último ato de homenagem ao morto. E bem que o padre estava tentado, já que tinha convivido com Frederic. Mas Amaranta se levantou, subiu no tablado, arrancou a carta das mãos do clérigo e disse:

- Como vocês devem ter percebido pela enorme semelhança entre Frederic e eu,  sou a irmã gêmea que é mencionada em sua última carta - ergueu o papel como se isso provasse o conteúdo afirmado por ela. - E eu gostaria que todos se retirassem pra que eu possa começar a reorganizar a casa do jeito que a deixei antes de passá-la ao meu irmão.

Antes o exterior da mansão de três andares era de pedraria. O material de construção se caracterizava por pedras alternadamente brutas e lavradas, adornadas por uma varanda enfeitada, pórtico e nichos de janelas com vitrais. A fachada era ornamentada por várias séries de cornijas intrincadamente entalhadas por toda a extensão dos três andares.

O interior abrigava oito lareiras de mármore e uma ampla escadaria em espiral feita de carvalho envernizado. O mural no teto da sala de estar era uma reprodução exata do famoso Gabinete Rosa de Luís XIV. Lambris de mogno percorriam todo o vasto salão de jantar, onde também se viam um bufê e um armário embutido com pratarias a cobrir uma parede inteira.

A sala de música localizada no segundo andar sediava prateleiras com livros e uma porta de vidro biselado que conduzia ao solário, no final sul do edifício. Ainda nesse pavimento, havia sete quartos; o sétimo, ou Quarto Vermelho, era ricamente aparelhado com molduras de madeira laqueada adornadas. As paredes e teto do banheiro da suíte principal eram recobertos do que parecia ser uma tela a óleo de Botticelli.

Já o terceiro andar possuía três quartos adicionais e uma sala de bilhar de teto abobadado, compreendendo o comprimento da sala de música no primeiro andar.

Mas após a reforma de Frederic, nas pedras ornamentais do exterior tinham sido coladas folhas de bananeira, onde se pregaram bonequinhos de vodu da feira de Nova Orleans. Em cima do telhado um Ovni fora pousado fazendo propaganda de uma loja de cuecas inexistente, nos anéis de Saturno. Os vitrais das janelas tinham virado letreiros em neon ostentando frases como "Eu não vou chicotear a sua bisneta";  "Parece que o iogurte do orangotango ainda não foi roubado"; "Valentim nasceu no campo e logo aos nove anos começou a se prostituir"; "Ontem eu peidei por duas horas seguidas". Também havia um letreiro com o texto integral de Guerra e Paz, o único livro que o erudito proprietário nunca tinha conseguido terminar de ler. No lugar das cornijas, cobras vivas eram amarradas e trocadas semanalmente, antes que seus corpos em decomposição começassem a feder, já que não eram alimentadas.

As lareiras haviam sido aterradas com sucrilhos e na escadaria cacos tinham sido incrustados para que ninguém viesse a pisar ali descalço, estragando o projeto original. No mural da sala de estar o Inferno de Bosch havia coberto a reprodução dos padrões do Palácio de Linderhof, inabilmente pintado por um garotinho de três anos de idade. Frederic o contratara para executar a pintura dando ao garoto uma foto 3x4 da Mona Lisa a fim de inspirá-lo. O resultado foi o Inferno do artista holandês povoado de personagens exclusivamente com a cara da Gioconda (o efeito era realmente muito mais aterrador). Os lambris do salão de jantar estavam poluídos por propaganda eleitoral, em que Frederic tinha gastado metade da fortuna, sem nunca se candidatar a nenhum cargo político. Ao invés das baixelas do armário encontravam-se cebolas picadas, aparelhos de barbear, bandaids grudados em esfirras, a escultura de um morcego sendo executado na guilhotina e uma gaiola em que Frederic prendia folhas de mostarda. Os compartimentos atrás das vidraças haviam sido transformados em estufa, onde rolos de papel higiênico eram guardados.

O vidro biselado da porta da sala de música fora substituído por lâminas de lata de Refrigereco, e contra a lente do telescópio no solário Frederic havia colado uma foto de seu dedão do pé, tirada de uma distância de 5000 pés, o resultado final sendo alterado com photoshop para dar a impressão de ter sido fotografado a apenas meio pé de distância.  Os sete quartos do segundo andar ele deitou abaixo e montou um mini-circo de horrores onde um carrinho elétrico passava por anões comedores de gorgonzola, o homem-perna, um ovo de galinha com barba, um bicho-preguiça com elefantíase, um camundongo com síndrome de down, pinguins com tatuagens e um rinoceronte tetraplégico; aliás, estavam reclamando seus salários na Justiça. Uma equipe de cientistas fora contratada para construir um vulcão no Quarto Vermelho, que tendo entrado em erupção no réveillon havia deixado um buraco no teto que era para ser uma tela de Botticelli.

Nos três quartos adicionais do terceiro andar havia agora, respectivamente ou não, uma piscina de piolhos, um depósito de sorvetes em temperatura ambiente e uma agulha, reservada para o maior aposento da casa. Na sala de bilhar, Frederic dormia, preparava seu alimento numa cozinha improvisada de camping e tomava banho num chafariz transportado do jardim para lá. Ali também havia um piano de cauda que ele usava para assoar o nariz e uma cadeira de balanço, com a qual praticava esgrima, karatê, boliche e escotismo. 

Era-lhe penoso manter esse estilo de vida, mas Frederic não conseguia ser diferente. Amaranta recriminava a insanidade do irmão, mas ela mesma não teria voltado ali para reverter o estado da casa não fosse por causa de uma noite de insônia.

Ano do Rei, missiva 875, Uma tarde Chuvosa no passado  

Posted by Jeremy Heathcliff

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"Não podes ver mais do que vês?"...

Lá no alto da escadaria era possível ver soturna figura, para ser mais exato ver não, sentir.

Rabsaqué não se da ao luxo de aparecer diante daqueles que não merecem sua presença. Contudo pode abrir certas exceções apenas para coagir alguém ou para que a pessoa fique deslumbrada diante de sua gloria.

Se fosse possível divisar o rosto da sombria criatura envolta em sombras, alguns poderiam achar até que ele olhava com indiferença para o esquife, ou com ar de vitória.

Os poucos que apareceram, falaram de como se conheceram e o que lembravam dele, Até o padre esqueceu que era padre e fez uma dancinha estilo Frederic em um dado momento, enquanto Amaranta falava e gesticulava com um envelope em mãos. Todos falavam e falavam, mas ninguém o conheceu como ele. Além da máscara, além do nome, além de um rosto, ele via a essência.

Mas esse não era o caso, ele entre todos ali presentes sabia realmente o que todos haviam perdido, alguns perderam um irmão de alma, um maluco excêntrico, alguns um amigo, um filho e um pai. Mas além deste conhecimento que escapava despercebido para os outros, Rabsaqué havia perdido um oponente poderoso, os papéis sempre se trocavam quando o assunto era Frederic.

Ele podia ver além das macaquices que ele aprontava, sabia que aquilo era a maneira que ele tinha para manter as pessoas afastadas e poder usar seu maior dom. O dom da Criatividade.

Podia claramente lembrar-se de um dos últimos encontros que tiveram. Ele era um dos poucos que conseguiam pegar Rabsaqué com jogos de palavras. Isto o irritava.

Chovia muito em Ratal naquela tarde. Frederic estava no telhado do antigo casarão, usava como roupa apenas um roupão de banho de um vermelho tão intenso que fariam morangos morrerem de inveja.

- O sol está bem radiante hoje, não acha, Rabinho?

- Estás cada dia mais louco mesmo, e não me chame de Rabinho se tem amor às próprias entranhas.

- Qual é, vai me dizer que você é igual aos outros, está vendo apenas abaixo das nuvens, pois eu sei que acima delas e muito mais além o sol continua fulgurante e majestoso.

Se naquele instante Rabsaqué estivesse segurando um diamante nas mãos ele com certeza o teria trincado de ponta a ponta, tamanha foi a fúria que o assolou.

Mas manteve a voz calma e melodiosa como sempre.

- Sua forma peculiar de ver o mundo sempre me surpreende, às vezos me esqueço do quão farsante você é.

- Mas você não vai contar a ninguém, afinal de contas quem acreditaria no tio da mentira...

Frederic era um dos poucos no mundo a respeito de quem ele não conseguia antecipar o próximo passo. Com os demais era bem simples, pois antes de travar diálogo com qualquer pessoa, Rabsaqué o havia feito milhões de vezes e com diversas possibilidades, mas com Frederic a coisa era bem diferente. O buraco era mais embaixo... a pose excêntrica e louca era apenas uma fachada. E era difícil fazer isso com ele, pois ambos jogavam o mesmo jogo. Mas Frederic tinha uma vantagem. As pessoas o classificavam como louco, o subestimavam e, o pior, menosprezavam sua mente brilhante. Não viam como ele realmente era.

- Quando você vai contar aos outros sobre seu filho?

- Quando meus gatos aprenderem a La Marseillaise em chinês ao contrário.

- Sei da existência do mesmo, mas ainda não consegui encontrá-lo. Mas é questão de tempo. E por falar em tempo, é justamente isso que você não tem.

- Meu chapa, eu falo pra você como pentear o seu cavanhaque? Ou como torturar mentalmente os fracos? Não, pois então cuida do seu que eu cuido do meu.

A chuva já diminuía, Frederic estava todo molhado e parecia muito contente com isto, olhava com fascínio os relâmpagos distantes e os clarões entre as nuvens escuras.

A cidade se estendia logo adiante, o contorno das casas e fábricas pareciam, a seu ver, formar desenhos com um padrão definido. Estendeu a mão e brincava de desenhá-los com a ponta do dedo, seguindo as linhas e contornos. Ele sorria feito criança com um brinquedo novo. Ou como alguém que descobre um segredo.

- Qual é mesmo a palavra que usamos para quando as coisas e pessoas não são mais aquilo que deveriam ser?

- Mudança.

- Sim, isso, mudança, é o que vejo. Tudo está diferente e nada é ou será como antes.

- Sabe, eu vou sentir realmente falta disto tudo.

- Saber o que você sabe não te desespera, não é?

- Não, pois eu sou como você, e se fico triste uso a chuva para disfarçar as lágrimas.

- Não sei do que você está falando.

- Tudo bem, não vou discutir com você, é perda de tempo discutir quando se sabe que se tem razão.

- Além disso, Rabinho, eu tenho certeza que tudo é transitório. O rei está morto, e vida longa ao novo rei. Tudo na vida se resume a isto.

Rabsaqué absorvia cada palavra como seu sobretudo retinha as gotas da chuva, ele teria muito no que pensar nos próximos dias.

- Depois eu quero é ver o circo pegar fogo, nunca pensarão em me procurar no tempo. Pois eles ainda não aprenderam o segredo. Nós não precisamos estar aqui, ser estes aqui. Podemos mudar e ser outros, ou podemos ser o mesmo, mas apenas em tempos diferentes.

O chão pareceu sumir sob os pés de Rabsaqué.

- Sei que me entende, pois este é seu segredo.

Novamente Frederic o havia surpreendido, duas vezes no mesmo dia.

- Mas não se preocupe, o segredo está bem guardado comigo, nem todos estão preparados para receber a luz, enquanto isso ficam vendo apenas por baixo das nuvens, eles não conseguem ver o além... do além.

Agora, ali no velório, todas aquelas palavras pareciam ter algum sentido.

Só restava apenas aguardar.

"Há uma fina linha entre genialidade e loucura. Eu apaguei essa linha."
(Oscar Levant)

A marquesa saiu às cinco horas, mas sua ampulheta estava uma hora adiantada já que era horário de inverno. Ela, a marquesa, estava atrasada , deixe-me ver - um dois três quarto cinco séculos pra frente de sua era. Esperava a condescendência do partido, ao menos um pouco, afinal, quem se engaja deve dar a vida ao partido e não pode se atrasar por um sequer segundo para tomar um cafezinho – aliás, nada mais danoso do que um “cafezinho” para manter os olhos bem abertos e continuar no ofício: “bebida capitalista por excelência” e este foi o motivo porque se queimou as várias sacas no brasil em 1929, lembrando que o Brasil chegou a exportar 15. 115.000 sacas de café (imagine isso caindo na cabeça de alguém, ou pior, imagine o estômago do cidadão? ). Onde eu estava mesmo?

- Porra, você estava enchendo o saco… para de protestar e narra isso direito! -
Tá bom, tá bom…

Bom, então a marquesa chegou. Era um castelo antigo, transformado agora em um arranha-céu de luxo, segundo as especificações gerais de sua patente, número WO09876544323. A descrição detalhada segue abaixo:

No anexo 1, temos uma visão aérea-helicoidal do tijolo 1, acoplado em sentido transversal à coluna de base da plataforma de sustentação 2, esta que , por sua vez, exerce pressão sobre a coluna 45, projetada na barra de apoio 32, disposta sob o aro 35 e o pino de indução cerâmica 62, colocado de forma que o seu cabeçote fique numa posição de encontro à banana 46, sobreposta de maneira que um palhaço escorregue (palhaço não que dá processo) e ainda caia no chão sobre a esteira 90 que é acoplada ao aparelho nadegal do cidadão 23, que se localiza sobre o eixo distinto do emérito candidato à deputado estadual 45, mesclado à glândula paroidal da nischtzia obligatara, ameba específica para a produção da turmalina branca 23, piroeletrica e piziofóbica, tendo como produto um ângulo pirovitante 23 de acutangulosidade morbid 17, perfeito para tratar do ressecamento das suas mãos.

Feita a descrição, passemos adiante. A marquesa subiu a escada e apareceu finalmente num grande salão que, por economia de texto (pois pensamos nas questões ambientais, caso você imprima) e, de saco, não decreveremos.

Ali, ou seja, no lugar que se imagine, encontravam-se dezenas de pessoas aplumadas, decoradas com o que havia de mais esbelto da frança do século 16. Não que isto fizesse lá grande diferença, no fundo, as pessoas daquele local eram apenas nobres, mais esnobes do que nobres, porém, mantendo ainda um certo requinte alfarrábico. Mas, na verdade, talvez eles fossem mesmo o que hoje se diria de “uns equisitões”: a aparência louçã de todos, mesclada ao ritual fanático de procedimentos, isto, era mais luxuriante ainda. Ou seja, eles eram praticamente seres ostracizados em nosso tempo, uma vez que como tudo hoje é uma merda, e eles ostentavam ares de fashion-week ancestral, não se adequavam bem a nossa sociedade moderna.

Mas queriam seus direitos, afinal, quem é que não quer?

E era por isto que a reunião havia sido estabelecida, para que pudessem, naquela ocasião, retomar um antigo palácio ou casarão, ultrajantemente retirado de seus domínios por uma plebe rude e burguesinha de meia tigela...

De repente um rapaz, vindo pressurosamente de dentro do salão onde se passava a festa e, tropicando e pigarreando e depois arcando a coluna numa posição de “sim, sou submisso”, achegou-se até os pés da marquesa, quase que os lustrando com um beijo eloquentemente molhado. Levantou-se após, tirou do bolso um lençol e o girou, em uma leveza de bandeiras desbragadas, proferindo - em bom tom - em seguida:

- A madame marquesa deu seu primeiro passo para adentrar o salão!

Dando berrida a isto, ocasionou-se o fato de outro cavalheiro perceber o vagaroso movimento da saia da marquesa, ao que irrompeu:

- A saia da marquesa balançou-se!

Mais ao fundo, um outro cavalheiro, este mais idoso, não vendo nada, mas sabendo que “regras são regras” e a etiqueta demanda certo costume, após não conseguir divisar o que se passava e sabendo que era sua vez de falar algo, exasperado, não mais se controlando, e um tanto pavoneando-se acusou a outra pessoa de seu próprio ato:

- Seja lá quem for... Flatulou!!!

Isso causou um certo alvoroço, não que este se destacasse, pois, como se sabe, a educação manda não demonstrar o sentimento de asco em público. Assim, todos sorriram, colocando suavemente seus lenços por sobre o nariz no intuito de escondê-lo, pacificando, desta forma, a situação ou, ao menos, tentando.

Nesse ínterim, aproveitando que as pessoas se distraíam com seus lenços , a madame entrou, antes que tivesse que esperar que todos os homens do recinto ladainhassem algo a cada movimento que ela viesse a empregar até que alcançasse, por fim, sua poltrona.

Bem, ela chegou no calor da discussão e, veja bem, com a questão do aquecimento global vigendo ardolorosamente em nosso tempo, e estes senhores, todos engomados, com suas roupinhas escandalosamente apertadas, aqueles inúmeros panos e babados, a peruquinha caprichando ainda mais na canicule pessoal de cada um, enfim, aquilo era o inferno declarado e estarrecido.

Em dado momento, o líder da reunião (afinal, aqui ninguém é igual, e a hierarquia é uma coisa a se respeitar sempre num partido) bradou:

- Vejam bem, creio que deveríamos retomar a posse daquele nosso antigo casarão, uma vez que ele nos foi expoliado pelas mãos daquela ardilosa e infame família...

E com isto, elevando seu salto e batendo no chão, continuou:

- Onde isto já foi visto? Nós, do Partido dos Nobres Falidos e Falecidos, passarmos por tal baixeza, expondo nosso sangue ao vexoso exercício de nos proternar diante dessa aberração! Ora, meus caros, deveríamos nos aprochegar agora daquele recinto e difamar aqueles que outrora nos açoitaram com a promiscuidade de seus corações caudalosos de assalto!

A isto, Roufos de Bengala levantou-se, de um assalto:

- E digo mais, o assalto está cada vez maior, minha pobre carteira, vejam só, que humilhoso dizê-lo, Ó minha carteira deslavada, vejam, esta, esta me foi roubada antes de que eu pudesse sentir o ar adentrando minhas narinas. Ó ladrões, ó pivetes enviesados, estes que, ao furtarem minha carteira, não apenas unicamente furtaram-na, mas também engoliram em seus ventres cheios de cobiça e, nada de comida, toda o meu valor, a minha dignidade! Ó , e que farei agora com estas mãos vazias? Ó insidioso destino, ó vida destituída, ó revez azarado, ó puta que o pariu....

E antes que o ó se tornasse mais uma tautologia, veio a frente do palco Bonsoir Julies para representar a peça do dia “ Brenos e os nobres pobres”, peça baseada na cultura clássica, apesar de seu registro não constar em nenhuma biblioteca. (Bom, mas o texto é meu e daí me permito a licença poética de dizê-lo, entendeu?). A peça, finalmente, teve seu início:

- Ó Brenos, então vossa mãe se matou?

- Sim...

- E qual o motivo de tão amaxofóbico passar desta para a melhor (ou pior, se ela foi como estava).

- Ela estava fatigada de ser vossa.

- mas, ele nunca dantes fora minha...

- Não, vossa burreza, não é a isto que me refiro. Não vês que me refiro a sua dupla personalidade, ao fato de ela se sentir partida como uma torta de flandres...

- Ela, pois, se achava com o aparelho digestório em ruínas... ó triste destino, partida ao meio, no meio de seu âmago... agora entendo aqueles meses em que tomei posse do jorro imaculado de suas entranhas, ó molescência fúnebre... se eu pudesse tê-la tomado em minhas mãos... quem sabe eu a salvaria?

- salvar –la – ia em vosso peito?

- em qual deles seria de preferência?

- Opa, deixe-me ver... creio que este é o mais apropriado.

- Seu mulequoso, então tendes à direita...

- Sim, perdoe-me, a curva é sempre mais para um lado.

- Entendo. Não obstante, ainda não pude conceber o motivo da falecência de vossa mãe piosa.

- Ora, nem eu. E quem poderia um dia importar-se com aquela horrorosa idosa dolorosa? Agora, veja que o é tenso, o propenso intenso de meu senso é destro dentro denso...

- Destro?

- Só de fim de semana.

- então, não presto em destro canhestro morrerás...

E todos se suicidaram no final.

Os aplausos estouraram por toda a sala. Cavalheiros e damas incontinham suas lágrimas pungentes. A sofisticação, o decoro daquele espetáculo. Quem é que não entenderia a cena? Tudo estava organizado de maneira perfeita. Aquela peça, sua voluptuosidade, encheu de estro a todos os que estavam ali.

Batendo os pés, numa berra e entre olas, o desejo de todos, entrementes, era o de seguir logo ao casarão e dominá-lo...

E foi o que fizeram. As ruas viram passar, em procissão, a turbamulta. Nobres galochando com seus sapatos altos, atravessando os asfaltos, indo até o casarão para retomá-lo. Triunfantes e sem motivo. E, assim, surgiu, sem motivo, Jean Jacques Sans-Cervell, repórter, solteiro, desocupado e especialista em furos sem razão de ser.

Sem saber, como sempre, Jean Jacques acompanhava os nobres , acho que até o cemitério (porque eu não lembro se a casa do rapaz que morreu é afastada do cemitério ou não, enfim...). Ele não sabia, é claro, que naquele dia ele discursaria exatamente naquele cemitério, junto a outras sumidades, sendo que uma das sumidades sumira de fato, mas deixava sua cova pra marcar presença.

Fingindo-se, então, de nobre e no meio daquela defuntagem( afinal, que nobreza estaria viva no século 21?), jean acompanhou o galope infrene daqueles rumo ao cemitério.

Ele estava atrasado. Pra variar. E sendo que isto nunca havia acontecido.

As pessoas o esperavam. E onde já se viu, estar atrasado em enterro de tão solene entidade? E como estar atrasado para um enterro em que nem se foi convidado, mas se é tido como um dos discursantes? Sim, a vida é cheia dessas coisas.

Para que ninguém ficasse ofendido, jean dizia que o trânsito estava difícil naqueles dias. Sabe como é a poluição tem aumentado o indíce de carros na rua e estamos no ano do peru, o que faz com que as almas fiquem alvoroçadas e tal...

Alvoroçadas... e os convidados do enterro viram... era ingente, mas era gente ou algo que o valhesse . Lá vinham. Com presença garantida: defuntos defumados ( o cheiro confirmava). Eram diversos e estavam furiosos. Soaram trombetas e vieram trotando. Queriam destruir tudo, o que ficasse viraria pó, se não obtivessem o casarão de volta.

A maioria dos convidados aturdida. Houve até um que se destacou pela inteligência e se escondeu em uma cova (mais tarde descobriu-se que ele morreu: de burrice). Os outros, porém , que ficaram, acharam o negócio cabuloso. E como não achariam – naquele exato momento os aristocratas se aproximavam do túmulo, buscando respostas:

- Ora, queremos saber quem se atreve a dizer que é o senhor de nossas propriedades!

E alguém gritou ao fundo:
- Eu sou.

Ao que obteve como resposta:
- Quem és?
- Eu sou.
E se dirigiram rumo à voz e nada de alguém:
- onde estás?
- eu nunca estou. Eu sou.
- És? E quem és?
- Eu sou o sou.
- mas se és o sou então és o sou, não pode ser apenas “sou”.
- De fato, sabe que eu nunca havia pensado nisso?
- Tudo bem, mas e nossas propriedades?
- Homens de pequena fé, vosso corações almejam propriedades tão pequenas quanto vossa fé. Eu, porém vos digo, que se me seguirem Eu vos darei o galardão da plenitude, a total onisciência da fartura...
- Estamos fartos da fartura! Queremos apenas os nossos bens!

Outra voz irrompeu, mais a frente desta vez:

- Mas esse negócio de bens não surge com a ascensão da burguesia e tal?
- Estás querendo dizer que não merecemos aquilo que é nosso?
- Não, não. Eu só queria participar da história. Bom, já vou indo...

Um cavalo vermelho chamado Bom-a-parte passa e morde a cabeça do nobre que estava reclamando. Um dos convidados, contudo, delata:

- O dono de tudo o que é de vocês jaz aqui. – e pulou em cima do caixão como se pulasse sobre uma cama d’ água.
- E quem é este inescropuloso? Vamos ressuscitá-lo para que ele nos entregue nossa posse.

A primeira voz, que se calara por um instante, retorna:

- Só eu posso dar e tirar a vida...
- Ah, cala a boca!

Outro convidado, por sua vez, dirige-se aos nobres e responde:
- Olha só, o morto é Andre Müller.
- Como é que é?
- Isso mesmo que você ouviu : Jacob Bocaj.
- Não posso crer...
- Creia sim, este que está na cova é exatamente ele, Alice Becila.
- Mas isto não é nome de dama?
- Não, Virgilio Dante nunca foi nome de dama, é de autor de varões.
- Como?
- Isto mesmo, isto que você ouviu : Neil Gailman, autor de quadrinhos.
- Nossa... que cara estranho.
- Cara? Quem te disse que é homem?
- Mas o senhor disse que não era dama?
- Claro, é damas: o nome é Diana Lilith.
- Diana, tal qual da deusa?
- Desde quando David Sandlor é nome de deus?
- Ora, estás passando a perna em nossas razões?
- Não, não vocês estão sem razão, olha, o nome é, em verdade, Christoper Cornell.
- Corneille, como o dramaturgo?
- Não, não, Frederico Frederic, como o paronomásico.
- Chega, Chega, qual é o nome dele?
- Jean Jacques...
- É ele? Mas este senhor estava conosco...
- Não, Jean Jacques chegou... vou conferir o nome dele. Jean Jacques era amigo pessoal do falecido.
- Jean Jacques, como era o nome do falecido mesmo?
- Não sei.
- Mas o senhor era amigo pessoal dele.
- Não, nunca o fui.
- Como assim?
- Sou amigo do defunto, não do falecido.
- E como é o nome dele, morto?
- Não sei.
- Como não?
- Nós nos chamamos por apelido.
- E qual seria?
- Não sei se devo dizê-lo. Ele não me autorizou.
- Ora, diga ou nós o expropriaremos de sua vida.
- Beleza.
- Como assim?
- Olha, não me importo não.
- Como assim, não gosta de estar vivo?
- Gosto.
- Então?
- Ah, sei lá. É só o autor me colocar de novo na história e ponto.
- Está seguro disso?
- Bom, eu não fiz nenhum mal a ele. Ele deve me querer por aqui.
- Ora, não entendo ainda o motivo para continuarmos aqui a tecer conversas com pessoas que não nos trazem nada.
- E o que é que você queria? Acha mesmo que encontrará alguma coisa? Viver é desistir de procurar a agulha no palheiro e achá-la, de repente, no próprio pé.
- O que queres dizer com isto?
- Não quero dizer nada. Uma vez que se exprime algo, já nos afastamos do mesmo. Ou seja, se eu disser cemitério, já devo estar na Conchinchina. Xiii... já fui...
- Ei, pare de enrolar... onde estão nossas posses.
- Não posso falar com vocês, estou na Conchinchina e vocês continuam no cemitério...Xiii... devo estar em Marte agora...
- Ah, nos poupe. Tu continuas aqui, vejo-te.
- Isso é o que você pensa, deve estar delirando...

E, de chofre, Sans-cervell chuta um dos nobres.

- Por que me chutaste?
- Só pra conferir se minha teoria estava certa.
- Que teoria?
- De que personagens são onipresentes.
- Mas, eu não sou um personagem...
- No fundo, todos somos...
- Estás dizendo que a vida é um romance ou conto ou algo do tipo. Então, deus é um escritor.
- Não, não estou dizendo isso.
- O que dizes, então?
- Não digo nada. Eu sou um segredo.
- Segredo?
- é, só que desvendado e sem solução.
- Como assim?
- Fácil, você pode até saber um segredo de alguém, mas vai ser sempre mentira.
- E por quê?
- Porque ninguém é que pensa ,o que diz, ou que faz, e nem o que pensa que diz que faz, assim, todos os segredos são mentiras.
- Mas que teorias complicadas...
- É que vocês ainda estão no século 16, esperem até chegar Kant...

Nesse instante, um dos nobres desmaia ao ouvir a palavra Kant. Outra vai acudi-lo, ele está morto, porém. Algumas pessoas são muito sensíveis. Amaranta, que estava quieta até então e cansada de toda aquela tragicomédia, cara ao século 16 ( e não me refiro aqui às obras de arte), finalmente enche de ar os pulmões, até que sua voz possa sair como uma trombeta e vocifera:

- Eu sou a dona do legado. O defunto não era nada, só está tapeando vocês, mesmo depois de morto.
- Ah... então nós iremos matar-te...

Alguém, porém, chamara a polícia. E ela veio, lúcida, para trazer o iluminismo para aquele obscurantismo de cena. E por mais que nem de leve parecesse, aquilo não era uma revolução francesa.

Necrópolis, 6 minutos do Ano da Salamandra  

Posted by Fabio

Necrópolis, aos 6 minutos do ano da Salamandra.

Ali estou eu. Minha sombra mais adiante, abrindo caminho com um sorriso falso. A sombra quase tão fria quanto minha febre, confundida com uma outra, sósia/homônima, mas tudo aparentemente. E vocês, continuam sentindo a minha falta? Continuam a perguntar por mim nas encruzilhadas?  Em cabanas distantes, exuberantes jazigos? Eu me aproximo, notem como pareço um personagem complexo, tão indescritível que não haverá mesmo descrição. Não bastasse eu estar aqui (estou aqui, agora), ainda tenho de usar essas roupas estranhas – essa nova modalidade de encontro social, o “enterro à fantasia” - o que não fazemos para não cair no ostracismo, para não deixarmos de receber convites insanos, até mesmo comparecer numa espelunca dessas, com o fito de celebrar a morte do sociopata. Mas sou eu, certo? Causa estranheza essa minha nova forma incorpórea? Meu rosto esculpido na pele do fantasma de uma cucurbitácea? Estou logo à sua frente. Close no meu dente do siso. Eu não pareço sorrir? Talvez esteja difícil reconhecer o meu riso jovial sob a maquiagem sórdida? Não pareço sorrir, então. Não!? Leitores? Autores? Frederic? Não!? Não há motivo?

Eu bem que andava desconfiado de que isso aqui fosse coisa séria:

- Então está bem. Deixe-me esclarecer uma coisa, agora, de uma vez por todas, e quando eu digo ´esclarecer´, o que eu quero dizer é exatamente isto: “esclarecer”. Eu não estou mentindo. Eu não posso mentir. Vocês já sabem disso. Eu não vou confundi-los. Nem a vocês, leitores. Nesta altura do campeonato – já seis minutos do novo capítulo – é sabido que incertas coisas em minha autobiografia não autorizada, são verdades, e que incertas outras, muitas até, não são. A finalidade de uma reescrita é contar-lhes apenas e tão somente a verdade. Parece simples, mas para lhes contar a verdade ao meu respeito é preciso que eu saiba, antes, que verdade é essa. Dito de outra forma: é preciso que eu me interrogue sobre as razões de ter tentado, por todos estes anos de marmotas, jaguatiricas e lobos-da-tasmânia, me passar por mim mesmo, ocultando minha imagem sobre o véu do “verdadeiro eu”. Se eu descobrir, completarei minha história. Sem lacunas ou adendos, sem trapaças (“baseado em fatos reais”). Talvez nesse dia eu já esteja olvidado, talvez eu já me tenha olvidado (de qual das autobiografias mesmo eu estava falando?).  Talvez minha história já não seja minha, talvez seja a sua, talvez... Amigos, de mim só receberão luz!

Em compromissos sociais como este, o melhor é chegar cedo, liquidar logo com o motivo de estar ali e ir embora o mais depressa possível. Infelizmente, eu sou apenas parte da história e o aglomerado de pessoas era tão labiríntico que tentar sair pela tangente era perigosamente um meio de tornar-se o centro das atenções. E vice-versa.  De modo que atravessarei esse espaço em branco, logo abaixo, no que o próximo parágrafo se passará numa região mais tranqüila do cemitério (o bom de ser o narrador é que podemos nos dotar com essas características maravilhosas de teletransporte, evitando assim uma série de situações fatigantes, até mesmo para o leitor).

Fiquei a meditar sobre o meu discurso.  As verdades mais simples são aquelas que antecedem à honestidade. Minhas memórias, que são verdades simples, talvez não sejam suficientes para lograr um veredicto sobre minha identidade; se esse for o caso, decreto, desde já, por convenção, que ainda sou o mesmo, e que, apesar de não ser eu mesmo, eu, mesmo se existisse, não seria quem sou, embora eu me lembre, ao menos, de já ter sido. Uma gota de chuva caiu sobre minha cabeça. Passei minha mão sobre ela e, “qual não foi a minha surpresa” (a saber, nenhuma), ao verificar que a gota havia se transformado num bilhete!!!! (o poder me corrompeu, admito, mas as facilidades tecnológicas são mais fortes do que minha imaginação). Neste bilhete estava escrito assim, meus caros: “Em seus horários de folga, será julgado o ilusionista”. Oh, não é impactante? A paisagem era agradável, uma garoa fina refrescava a multidão, flocos de neve refletiam o poderoso sol do meio-dia. Então vieram os ciclones, as erupções vulcânicas, os abalos sísmicos. Mas duraram apenas alguns segundos e tudo voltou ao normal, ou seja, à neve e ao sol.  Acho que é o suficiente para um julgamento tão importante. Agora recebo a alcunha de “o ceifador de sonhos”, e quisera mesmo poder ter sido. Serei absolvido por querer ser culpado? Eu profetizei minha vinda a este tribunal, eu me acusei e dos fatos, mesmo não sendo testemunha ocular, deles me inteirei através da imprensa. Quem são os meus juizes? Percebo que eles vêm de toda parte, são desde avatares desprovidos de livre-arbítrio até musas padroeiras do bloqueio criativo. Vão me interrogar, eu sei, sob tortura e juramento. Espalhado por aí será o meu retrato, grudado em postes de iluminação pública, distribuído por garotas sexy nos semáforos, estampado em santinhos com calendário do ano passado; o meu irredutível retrato em cartazes de “procura-se um defunto honesto” e pôsteres divulgando simpósios irrelevantes; o retrato, quem sabe, autêntico, e quem se importa, nas cabeceiras de inimigos esquecidos, instruindo simpatias e teorias da conspiração. Eu olho para ele, vejo ali um outro a emular o meu legado, mas não há legado algum.

Vamos correr com isso. O leitor talvez não tenha dificuldade, mas é preciso que eu próprio me veja, ali, onde a cena agora tem lugar, a saber, ali adiante, onde há pouco estive, antes de fazer uso de meus extraordinários poderes de retirada, conforme o roteiro que tentarei seguir, “nas águas tormentosas do zênite solitário – lá onde o creme purpúreo da manhã atravessa os dentes afáveis do campesino: no centro de gravidade do instante, no útero do Nada”. É preciso também que eu diga algo, antes que eu me perca de vista, sobre a infestação de zumbis metafóricos na “vasta terra desolada em que urubus cativos arquitetavam mórbidos flagelos”. Havia exceções: zumbis não-metafóricos, os zumbis de figuração, alguns pareciam verdadeiramente zumbis.  “Sorriam os zumbis, como monstros descalços”. Alguns choravam, “por não haver tempo de difamar a marquesa, nem de escapar aos sarcasmos maldosos do sanguinário bobo da corte”, que, por sinal, também cumpria uma função alegórica. Para não parecerem hostis, usavam um garfo chamuscado preso em suas tiaras, e em dias alternados tentavam sorver o orvalho das folhas com a força do pensamento. Pedaços de si mesmos espalhados pelos oceanos, pelas catacumbas e pelos laboratórios, guardados a sete mil chaves em ataúdes construídos com o dinheiro público. Mas também eles estavam temerosos da revolução proletária – era um tempo de velhas revoluções - e por isso mantinham suas cabeças nas covas, vigilantes, potentes carabinas entre os dentes,
prontas para o justo combate.

Era tanta encheção de lingüiça e ninguém dava a mínima realmente para o cadáver propriamente dito jazendo no opaco chão frio como um picolé de bife mal passado. O cadáver era um elemento estranho, descontinuado ao cenário, não fazia parte da paisagem, e era mesmo avesso a ela.  O cadáver jazia no chão sem que ninguém notasse e isso era digno de nota.  Como era digna a nobreza cadavérica, já devidamente fantasmagórica, resistente aos olhares concretos ao redor.  Tudo ao redor era sólido, e parecia destinado a ironizar as virtudes de um materialismo neo-hipócrita. Desviarei o meu olhar de cena tão triste. À espreita, atrás de uma lápide manchada com o sangue de uma galinha preta vitimada por um despacho de Exu (que, disfarçando, requeria expedição de ofício a Satanás para prestar esclarecimentos sobre o fato), uma coruja espiava os espectadores e os espiões. Não longe dali também podia ser ouvido um uirapuru voyeur.  De tempos em tempos a coruja planava pelo sarcófago do Duque de Dedeuqud, colidindo com uma torta de pêssego. Mas não façam juízo precipitado dela, leitores e amigos, que ela estava consciente de perfazer com sua trajetória um pastelão de pouca categoria. Digamos que ela cumpria ordens e, sobretudo, não queria confusão. As rotinas de vôo eram fastidiosas e a coruja ficava profundamente vexada com elas. Fui informado de que ela nada recebia por seus pairados insalubres. Porque a maldita torta – essa informação eu só estou recebendo agora, pelo ponto eletrônico – ficava acoplada a um ninho de vespas. Houve alguma discussão em torno do trajeto descrito pela coruja – se uma parábola ou uma hipérbole -, mas ela negava respostas fáceis (a coitada achava que com isso estaria sendo vingativa). Mas atrás do avental da coruja também havia esperança e bondade. Esperança no futuro, nos jovens poetas, nas jovens formigas (ela havia conhecido Pai Jack na aldeia de Cariatuca), na juventude quase cintilante dos bondes pirofágicos do Reino das Britadeiras Falantes. E a bondade ficava patente no capacete de bronze que ela levava a tiracolo, que continha a inscrição “bem que eu avisei” gravada em ´bronze´ (e quando eu digo “´bronze´” eu me refiro ao fato da nova frase ter sido grafada sobre a palavra ´bronze´). Oportuno ainda mencionar que, dois anos antes da invasão dos zumbis, a coruja havia extraído uma pedra filosofal do rim, e guardava com orgulho o recorte de jornal que divulgara o incidente.

MANCHETE

“Rim de falcão peregrino será leiloado amanhã no hospital municipal”

Havia decerto alguma deturpação dos fatos, mas ao menos a foto era dela, a honrada coruja deitada numa maca, fazendo o sinal de ok. Parecia sorrir atrás do balão de oxigênio.

A coruja, portanto, revelara disciplina e um método de trabalho seguro, o que a fez ser convidada para desfilar em carro alegórico. E quando eu digo carro “alegórico”, eu não quero dizer que o carro era alegórico ou mesmo “”alegórico””, e sim que era “”””alegórico””””. Ela bem que queria ficar comovida, agradeceu em tom choroso: “depois não digam que eu recusei”, e entrou numa gruta, onde a primavera se escondia. A primavera irá aparecer mais adiante, protagonizando uma cena crucial para a compreensão do argumento que defendo neste texto.  Conste ainda – a lista já está no fim - que a coruja freqüentava aulas de kung fu, e fazia o possível para respeitar as leis de trânsito. Ufa!

Amigos, é claro que vocês já notaram a atmosfera lúgubre que oprimia a cidade. Era um tempo de síncopes e contratempos. Havia um quê de revolução francesa no ar, como já sabem, havia terror e ilustração. Tudo começou porque os zumbis queriam ampliar o seu mercado imobiliário e ocuparam um bordel de propriedade estatal. Após algumas tentativas frustradas de negociação (entre as quais a de que os zumbis poderiam usufruir gratuitamente dos serviços públicos), foi decidido pela executiva nacional dos morto-vivos que as próximas invasões seriam em propriedades privadas. A aristocracia entrou em alvoroço, medidas firmes tinham de ser tomadas. O governo, que já confiscara os pula-pulas das crianças e, para piorar, sobretaxara os quadros de Mondrian – coqueluche do verão – agora também estava disposto a convocar todos os primogênitos para se juntarem ao glorioso coral da “transição democrática”, que entoava hinos patrióticos em comoventes cerimônias ao ar livre. As sarjetas já escoavam as águas vermelhas da decadência, os tapetes triunfais desbotados pelos militantes da fama passageira. Na periferia, um mercado negro de imóveis culminou em fuzilaria entre gangues de zumbis adversários.  Indiferente a tudo isso, o uirapuru voyeur acendeu um charuto e, seguindo as orientações de sua bússola, lançou-o ligeiro à noroeste. O charuto perdeu o contato com a realidade.  Em terreno fértil, suas chamas estariam alforriadas.  “Os não-fumantes jamais me entenderão”, disse, “mas o charuto não tinha uma saída de emergência”. As queimaduras, por sorte, foram trocadas por duas cestas básicas.

Depois de se banhar na fonte da juventude (o diretor de arte incluiu uma “fonte da juventude”), a coruja abriu os olhos. Depois fechou. Então abriu e fechou de novo. Voltou a abri-los, mas em seguida os fechou. Mais tarde, achou por bem abri-los outra vez, e até os arregalou, mas tornou a fechá-los logo depois, imediatamente os abrindo e fechando. Posteriormente a este acontecimento, a coruja abriu e fechou os olhos, abriu, fechou e ficou abrindo e fechando sem parar até fechar. Finalmente abriu e morreu macabramente.

- Alguém aqui já estudou o conceito de filodoxia?

- Quando começa o horário de verão?

- Parece que as metáforas vão ser proibidas.

- Calem-se! Parem de fingir que não se importam. Por que a bendita não morreu no primeiro parágrafo, na primeira linha?

- Talvez ela tenha querido nos livrar de sina semelhante.

- Não estamos seguros neste texto.

- Eu olho para o espelho, e vejo apenas um espelho.

MÃE DINÁ – Dize-me quem vês no espelho e eu te direi quem és.

NARCISO – Espelho espelho meu, existe alguém que goste de mim mais do que eu?

ESPELHO – (mostra a imagem de Narciso)

NARCISO – Quem é esta loira tingida horroróooosa, que gosta de mim mais do que eu?

MÃE DINÁ – Óia, fio, cum toda certeza essa loira é a Xuxa.

NARCISO – Vai embora, coisa ruim! (atira um toco de pedra-sabão no espelho, que se fende em 7 pedaços).

ESPELHO – (desregulado, apresenta uma reconstituição da morte de Jimi Hendrix, com fotografia desfocada)

NARCISO – (atira o espelho ao fogo)

EU – O que “Frederic” “quis dizer” com essa galeria de telas-espelho? Estaria ele nos insultando? É tão melhor assim do outro lado?

VOCÊ – Are you talkin´ to me? 

Attila Meskó era um que fazia figura distinta. Esfuziante ele dançava, era um hoedown, arriscava uns piparotes, engabelava com um violino de um só corda (as demais, arrebentadas, pareciam acompanhar o ritmo da dança), o bico do seu sapato quase meio metro à sua frente, espetando os companheiros de febre e assombração. Embora caminhasse com graça, sua sombra era coxa. Ali estava ele, “maldito Domotiulo”, entre os zumbis, a gravata borboleta escondendo os olhos, absortos nos passos inúteis, dos atos inconsciente de todo. 

- Eu voltarei! – ele gritou, tendo acabado de chegar.

- Será que o senhor não quis dizer “Eu voltei”? – perguntei-lhe

- Yaaakaaauulaaaahtkotkotkotkotpbilipslsoopppappapapahhoouuuuuur

- Como é que é? – eu é que perguntei, tentando criar um contraste irônico.

- Eu voltarei! Eu voltarei, Domotiulo!

Para ser sincero (eu não prometi não ser), confesso aqui minha perturbação: é que já não sei para o que olhar.  Não sei mais onde, nessa confusão nonsense de metáforas que não cumprem sua função, buscar sentido. Estarei sendo seletivo demais, ou de menos? Alguém que acaba de passar por mim me avisa que o “excesso de informações” de “nossa contemporaneidade falida dos dias funestos de hoje” dificulta o perfeito controle consciente das diversas abordagens possíveis, o milagre dos personagens que se multiplicam como pães, cada personagem contendo dezenas de personalidades, cada personalidade contendo centenas de múltiplas instâncias - e a conta está só começando.  Inclusive que eu caminhei mais adiante, que a conversa agora então estava assim insuportável. Foi quando me deparei com uma pavana para uma infanta defunta. A defunta, seus pais, sua irmãzinha mais velha, de não mais que seis anos (eu queria poupar o leitor de saber que ela possui cinco anos, sete meses, oito dias, quatro horas, doze minutos e vinte e sete segundos). Os pais sem entender o nobre gesto de um estranho que, do nada, iniciara uma elegia triunfal, uma elegia sobre heroísmo, coragem e sacrifícios:

- Por que o destemor desta jovem – prosseguia Domitilo Kasparkazu - nos enche de orgulho e inspiração. - O leitor já sabe, mas ele chorava: - E sempre nos lembraremos desta criança facínora, que se embrenhou nos pântanos da discórdia sem nunca deixar de pelejar contra todos os inimigos; sua espada agourenta manchada com o sangue dos mouros, dos otomanos, dos tupinambás! Almas ceifadas foram de nazistas, socialistas, iluministas, especialistas e nudistas! Cabeças rolaram de cristãos, hereges, infiéis, fanáticos, pagãos, descrentes, anões, bezerros, operadores de telemarketing e misses universo! Exegetas foram espancados, panegiristas foram destroçados; poliglotas e inadimplentes, escalpelados. Perdão não era o seu nome! De quem cruzasse o seu caminho, mãos, braços e pernas catapultados ao além, sem piedade ou privilégio: burgueses democratas, alquimistas escravocratas, frugais magnatas; capitalistas zen, senhores feudais assalariados e devotos iconoclastas. Logrou o ideal do extermínio, e nele não poupou pescoços, nem dos xiitas, nem dos trapezistas, nem dos criminosos irrecuperáveis; nem dos fracos, nem dos oprimidos, nem dos reis, nem dos príncipes, e muito menos da classe média conivente. Fulminou os intelectuais, os miseráveis, os roedores. Torturou pederastas, ex-pederastas, hermafroditas, tarados celibatários, estupradores castos, meretrizes frígidas e solteironas sado-masoquistas; açoitou afro-europeus, afro-asiáticos, afro-africanos (houve mesmo um caso de afro-egípcio), afro-nipo-mexicanos, afrodisíacos, ibero-descendentes, imigrantes de toda parte, migrantes de qualquer lugar; flagelou com toda a raça perversa, mulheres, crianças, velhos, embriões, prêmios Nobel da Paz, cubistas adolescentes, druidas lacanianos, wagnerianos judeus, parentes de primeiro e segundo grau...

Nisso um sujeito baixinho, com uma prancheta na mão, parecendo muito atarantado, apareceu com uma comitiva interrompendo a falação de Domitilo:

- Sr. Domitilo, esta é a quadra G1, túmulo 18, o senhor foi requisitado na quadra C1, túmulo 18, vamos, vamos, nos acompanhe, estamos atrasados.  O seu discurso é um dos mais aguardados.

Domitilo, perturbado com a interrupção repentina, e com todo aquele pessoal truculento praticamente o arrastando à força, não sabia o que dizer. As mãos, na altura do peito, pedindo uma explicação, o olhar assustado. Estava constrangido pelo desrespeito profundo com aquela família, cortarem sua homenagem de maneira tão grosseira, nunca vira coisa semelhante. Além do que, parecia uma tremenda falta de organização não informarem corretamente o local correto para onde devia se dirigir. Saiu com os braços levantados aos céus, como se pedisse perdão aos deuses por aquela gente inconsciente dos atos. Vamos segui-lo.

Negócio Arriscado.

J. - (O sujeito que comprou o rim da coruja) – Sinto-me bem melhor com três rins.

J. J.  – Por quanto você faz negócio?

J.  – Cem conto. O da coruja vale duzentos.

J. J. – Ofereço 150 pelo da coruja, mais minha vesícula, que está com pedras.

J.  – Com pedras não dá, vou ter que arrumar depois. Você não tem algum osso legal, uma articulação maneira? Fiz um transplante de vértebras uma vez, fiquei quase três anos com elas, depois troquei por um esqueleto completo, zero.

J. J. – Hum... serve os pinos do meu joelho?

J. – Sem chance. Duzentinho pelo da coruja.

J. J.  – Cento e sessenta e cinco, mais os três dentes que me restam e uma parte do cerebelo.

J.  – Como estão esses dentes?

J. J.  – Olha, um tá cariado, mas os outros dois estão beleza, fiz clareamento a laser recentemente, paguei uma fortuna, até dei um dos dentes como parte do pagamento ao dentista. 

J.  – Cento e noventa e cinco, sem o dente cariado.

J. J.  – Cento e setenta e cinco, sem o dente cariado.

J.  – Cento e noventa, com o dente cariado.

J. J.  – Cento e oitenta, com o dente cariado.

J.  – Cento e oitenta e cinco, com o dente cariado e com a amídala.

J. J.  – Eu não tenho amídala.

J.  – Cento e oitenta e cinco, com o dente cariado e com uma sobrancelha.

J. J.  – Cento e oitenta!

J.  – Fechado.


- Ouvi no noticiário que o inverno vai começar mais cedo este ano.

- Mais cedo, quanto? Será que vou precisar adiar minhas férias?

- Parece que serão apenas alguns centésimos de segundo.

- Mesmo assim. Eu sempre lembro daquele nosso amigo que foi despedido durante as férias.

- Mas ele tinha problemas de relacionamento. Uma vez entrou, ensandecido, num restaurante, a fim de revelar o significado de rosebud, aos gritos, para os convivas. Depois de ser lançado ao asfalto, continuou importunando os transeuntes, julgando ser uma atitude máscula.

- Essas coisas realmente me amarguram.

- Estamos aqui, o vento desvia de nós e, no entanto, insistimos em selecionar nossos preconceitos.

Domitilo já está chegando no local correto onde deve discursar. O movimento só aumentou desde que eu estivera ali.  Havia agora uma guilhotina improvisada na qual as crianças zumbis brincavam de decapitação. Faziam uma fila para perderem a cabeça, e competiam para ver de quem era a cabeça que rolava mais longe. Depois, grudavam novamente a cabeça no pescoço e recomeçavam a brincadeira. O almoço já fora servido, e Brócoli havia caído dentro de um caldeirão de feijoada (“socorro, Domitilo!”), mas o mais interessante é imaginar como isso poderia ter acontecido. Alguns zumbis queriam discursar também. Mas nenhum deles irá discursar, eu não suportaria. Já basta o fato de que o roteiro informa a existência de um discurso de Rabanete daqui a uns vinte parágrafos.

Um painel eletrônico anunciava os discursantes pelo número de senha.

- Ufa, chegamos a tempo. O seu discurso é o de número 744, Domitilo. Faltam apenas 3.

- O meu é só o de número 1516... – lamentava Diabrete.

- Alguém viu minha senha? Inclusive será que eu a perdi? Sou o número 991! 

- Mas você já não tinha discursado?

- É que eu fiz várias inscrições, inclusive. Ainda tenho nove discursos para fazer. Então agora é assim.

...

- 744

- Amigos! Oh! Ah...Ohhhh. Aahaiahooo. – teve início uma quase cena de contorcionismo, temperada com prantos terrificantes e soluços espetaculares; Domitilo fazia sinais de que não tinha condições emocionais de prosseguir, ameaçava abandonar a tribuna (a qual ficava sobre o túmulo) – estou muito abalado, me desculpem. – Todos tiveram de esperar durante quarenta e quatro minutos Domitilo se recompor; quando ele finalmente retornou ao púlpito, novamente teve uma crise após o “ó amigos”. Mais quinze minutos de espera.

- Começa logo isso aí, Domitilo, estou louco para fazer o meu! – não se continha Diabrete.

Domitilo logrou, com dificuldade, proferir estas palavras:

- Esse momento é comovente demais para mim. Por isso, meus caros, é que insisto para que compartilhem comigo este momento. Antes de mais nada gostaria de agradecer ao amigo Nereu Raviola, sem o qual eu jamais teria conquistado este prêmio.

- Que história é essa de prêmio, meu chapa, você está aqui para fazer uma oração fúnebre!

- Ai, Domitilo, você não vai me agradecer também, Domitilo? Quanta injustiça!

Domitilo, novamente apanhado de surpresa, mesmo em choque, mesmo inconformado com mais uma demonstração desmedida de falta de organização dos realizadores do evento, procurou emendar o discurso, para não fazer feio:

- ... pois é um prêmio estar aqui hoje – Domitilo se esqueceu de explicar o que Nereu tinha que ver com isso – um prêmio poder tecer aqui honrarias ao nosso saudoso Alfred.

- Frederic! – berrou alguém, na multidão.

- Ao Fred, eu disse, nós éramos amigos muito chegados. Fred e eu costumávamos nos encontrar nas convenções anuais de pescaria. E hoje, quem poderia imaginar, estamos aqui para comemorar a sua morte, que segundo soube, ele faleceu há menos de três semanas.

- Ele morreu ontem! – gritou alguém

- Ó, é tudo tão recente! Frederic é daquelas pessoas que só morrem uma vez!

- Sim, e que quando morrem deixam toda uma vida para trás! – motejou um engraçadinho, tendo um ataque apoplético em seguida, deixando toda uma vida para trás.

- E agora estamos aqui – continuou Domitilo - acompanhando esse funeral tão vistoso. Eu nunca me canso de apreciar o requinte lúgubre dessa gente tão póstuma, a gente finada. Toda esse clima mortuário me faz lembrar dos tempos em que eu visitava o meu tio avô no norte da Dinamarca. Ele costumava me repreender por não decorar as poesias que ele recitava para mim. No entanto, hoje vou recitar uma poesia dele, uma das poucas que me lembro, como sinal de gratidão pela morte de meu grande amigo.

“A vida é assim
É como se fosse um amendoim”

Domitilo parou por um instante. Era “amendoim” ou “zepelim”, ou seria “outrossim”? Sim, parecia ser isso:

“É como se fosse um outrossim
Em que cada flor, cada pétala de flor, cada espinho de rosa sangrando o dedo sujo de mertiolato
É uma forma de...

O que era mesmo?

- ...uma forma de... – Domitilo finge chorar enquanto não encontra a palavra - ...uma forma de...! Meu tio-avô morreu quando escrevia este poema fúnebre, meus amigos. Ele contém uma grande lição, pois os espinhos parecem ser coisa agradável, mas é o que faz toda a diferença para a vida ser trágica. Frederic viveu uma vida trágica, e vejam só onde ele está agora! – Domitilo fica em silêncio, achando que suas palavras profundas precisavam de um certo tempo para se fazerem ecoadas. Depois, pede para a banda, que não parava de tocar a marcha fúnebre de Chopin em ritmo de mambo, a executar uma música circense enquanto ele fazia um número de malabarismo com cachos de uva, e Brócoli, com uma roupa de aristocrata francês do século XVII toda suja de caldo de feijão, o acompanhava, dançando. 

O cardápio não consistia apenas de feijoada. Havia rodízio de massas, carnes, saladas e doces. Quem estava financiando aquilo, e para quem iria o dinheiro dos ingressos? Temo só de pensar. É claro que também estavam ali penetras e foliões, a maioria embebedados, disputando quem mais comia. A disputa visava disfarçar, com áres lúdicos, a extrema fome dos sujeitos, que achavam que seria indelicado comer demais sem estarem muito bem fundamentados. Gordiabo era um dos que participava da disputa. Sua presença aqui visa agradar aos fãs de horror gore, já que os zumbis não conseguiram cumprir essa função. Já de cara, Gordiabo engoliu, sem mastigar, catorze panquecas, dois perus assados, vinte e oito coxinhas e nove almôndegas; sua epiglote, revoltada, fazia piquete na entrada do esôfago, bloqueando todos os alimentos vindouros. Gordiabo, todavia, só queria saber de comer. Essa era a razão de estar ali. Sem consciência da própria fome, continuou enfiando as guloseimas goela abaixo, sessenta pizzas de mussarela, cento e vinte de calabresa, macarronada a granel. Mas a epiglote era firme. Não demorou para Gordiabo perceber que estava com “certa dificuldade digestiva”, o que, no entanto, não era suficiente para interromper a comedeira. Dezessete bifes de fígado, dezenove ovos de avestruz, cento e quinze porções de lasanha, trezentos e trinta e três espetinhos de lingüiça (incluindo os espetinhos), oitocentos e oitenta e oito pastéis de palmito – a comida ia sendo entulhada na boca, sem mastigação, não havia espaço para a arcada dentária se movimentar. Setenta e quatro hambúrgueres e cinqüenta e oito cheeseburgueres, mil e dezoito chucrutes mais o dobro de bacalhoada, uns dez metros da extremidade de uma bochecha à outra, que completamente abarrotadas, já não permitiam a Gordiabo estabelecer nenhuma comunicação sonora. Incontáveis pudins, quindins, brigadeiros e trufas carameladas. O contorno dos lábios rasgados, só o que se via era um bolo de carne que ia sendo continuamente socado para dentro, para mais moquecas, quibebes e paçocas entrarem. Como ele tampouco conseguia respirar, foi necessário que passasse a usar uma câmara de oxigênio. Nhoque de gelatina, risoto de maria-mole, rapadura de camarão.  Diabrete ajudava Gordiabo, abrindo espaço em sua boca com uma furadeira elétrica, formando pequenas lacunas em que novos guisados e rocamboles eram depositados, Gordiabo jazendo no chão opaco e frio, suas bochechas cobriam todo o seu corpo. A pressão da comida contra o céu da boca fez os olhos saltarem para fora e se perderem, os maxilares já há muito rompidos, bem como as gengivas que foram descoladas dos dentes e misturadas com o alimento. Junto com as tortas, os frapês e as maçãs do amor (Gordiabo estava apaixonado), ele devorava também remédios para dor, que não faziam efeito, por permanecerem na boca. Sete mil, quinhentos e quarenta e cinco asas de frango – ele voltara aos salgados depois da sobremesa -, quinze mil novecentos e doze salsichas empanadas, além de mil e outras tantas, refogadas. As glândulas salivares já tinham desistido de cumprir sua função, indignadas com as condições apavorantes de trabalho. Assim, dois engenheiros foram contratados para instalarem um grandioso sistema de irrigação na boca de Gordiabo.  Sangue era retirado de suas artérias e injetado na comida (a idéia foi de Domitilo Kasparkazu), a epiglote superpotente também já se resignara, e o bolo alimentar (quatrocentos bolos de aniversário, oitocentos de desaniversário, oitenta mil bolinhos de chuva) começava a se dispersar pelo corpo. A comida saia pelas orelhas, pelas narinas, pela urina. Gordiabo suava empadas e lacrimava sanduíches. Suspeitou-se de uma fratura no tornozelo, mas era o tornozelo de uma ave, perdida em suas canelas. Com um desentupidor de pia, Diabrete tentava confortar Gordiabo, mas infelizmente o seu discurso ficou reduzido a um peido faraônico, que fez muita gente desistir de esperar para fazer o seu.

Quem poderia imaginar que Gordiabo seria o responsável pelo momento mais enciclopédico do funeral? Sua explosão dando margem a pesquisas hermenêuticas e ressuscitando alquimistas como de um sono profundo. A carniça ambulante desintegrada em adubo de miséria. Máquina mortífera, revolução industrial, os fragmentos do inferno cobrindo os leitos de morte, a bomba de hidrogênio era feita, na verdade, de chucrutes. O lodo espumante de estrume voraz lancinava as almas desesperadas, a rançosa monstruosidade coroando a manhã nauseabunda, poluindo o próprio lixo com sua podridão de rastros pustulentos e vapores de enxofre apoteótico, e parecia estranho, mesmo aos urubus, mesmo ao mais metafísico dos abutres, parecia muito estranho naquela manhã de escórias e abominações, de pestilência genocida preocupada com o social, que o “pum atômico” tivesse causado estupor nos zumbis. Os zumbis, aberrações semânticas de morte “em aberto”, estavam mortos.

RABANETE

Então agora é assim? Inclusive que então, agora, então é assim inclusive? Agora ficam fazendo retrospectiva das melhores gafes do ano, e inclusive que já pediram também minha opinião, mas agora inclusive que a temática é mais iluminista e estavam curiosos para saber o que eu penso inclusive sobre as revoluções, e sobre o ovo e a galinha, e também essa história de o Tempo é composto de “momentos inesquecíveis”. Que inclusive é que é tudo uma farsa ideológica para esse pessoal manter os seus empregos, cocorejando suas idéias, é isso é que é. Mas então vem com essa história de que o indivíduo nasce, cresce, sofre, tem muitas emoções e morre? Qual! E que são sempre as mesmas emoções! E ninguém fala nada sobre isso, é incrível, é tudo uma hipocrisia do cão, e que inclusive raivoso ele é. Que vem falando agora sobre as novas emoções, que inclusive experimentaram algumas, mas é tudo balela para continuarem escrevendo e vendendo os mesmos livros, é o que eu digo! Todo mundo só quer saber é de disfarçar, fazendo vista grossa para os novos experimentos, porque é isso que a nossa sociedade contemporânea falida dos dias atuais considera que é bom para manter a “felicidade” psíquica da massa, e também o dinheiro no bolso desses mecenas incultos, inclusive falidos também. É isso o que é, modéstia a parte, eu sei o do que estou falando e também o que acontece por aí nesse lado sombrio da existência que eles fingem não existir. Inclusive que sei o que acontece. É tudo uma podridão esse esquema de disfarçar, que é inclusive que por isso que ninguém mais escreve poesias como antigamente, que agora virou moda fazer elogios às coisas mais óbvias, como se fosse para demonstrar delicadeza de sentimento. Qual, qual e qual! Onde inclusive vamos parar? Mas alguém hoje em dia está interessado em se emocionar com as emoções verdadeiras, e aquelas que realmente interessam para a formação emocional do indivíduo? Nada, que hoje em dia, nesses tempos de hoje funestos, hoje só querem saber mesmo é das emoções de sempre, do tradicionalismo barato do sentimento maria-vai-com-as-outras, e é por isso que ninguém realmente se emociona de verdade quando é necessário. Qual que é! Inclusive que até a compaixão moral agora é onda do momento. Todo mundo quer fazer tatuagem e ter compaixão. Inclusive que isso é assim agora. Agora também tem essa história de conformismo, e de casamento guei entre pessoas da mesma família. E até agora a empatia foi elevada ao status de sentimento “cult”, que também fazem apologia da “vida bandida” glamourosa, só porque eles viram na televisão, nem no cinema foi. É duro de agüentar, inclusive, nos dias de hoje, essa filosofia furada pós-galinácea de sentimentalismo barato e experiências novas, que inclusive até de experiências com drogas eles estão falando agora, mas alguém quer experimentar? Qual, que drogas que nada, que eles preferem ficar nesse esquema piegas de “tinha de ser assim mesmo”, e ainda ficam falando, ainda por cima inclusive, do ovo que eles mesmos botaram e nunca viram. Inclusive que então agora é assim, que agora ainda temos que suportar tudo isso de bico calado isso é que é o pior, a gente nem consegue protestar direito contra esses absurdos modernos, é por isso que eu digo e continuo dizendo, inclusive, que agora então é assim! 

DIABRETE

Só faltam nove!

CORUJA

Não olhem. Não me mordam. Não me queiram bem. Não me ajustem aos seus instintos. Não façam promessas em meu nome. Não me paguem o que eu devo. Não escutem o que eu tenho a ouvir. Não zombem da minha fadiga. Não sustentem a minha nobreza para terceiros enquanto durar a minha fé. Não queimem os meus escritos antes que eu seja olvidado. Não se curvem diante de minha mansidão. E quando for a hora, não se queixem pelos meus lamentos. Quando eu estiver na latrina, não rufem os tambores. Quando eu for jovem novamente, não pisoteiem meu canteiro de jasmins. Quando eu sorrir pela vez derradeira, não façam mais piadas ingênuas. E se eu for embora, não me deixem voltar. E se eu ficar, não me deixem fugir. Mas se eu fugir, não me deixem encontrar. E se eu me encontrar, não me mostrem o caminho de volta. Mas se eu voltar, deixem-me.

AMEBA DA MADRUGADA

Evocação ao abismo: oh abismo das trevas do mar, eu vos conclamo para que compareça aqui agora e profira o seu nome, em vão, no vão das escadas. Abismo, eis-me aqui, agora.

TORVELINHO DA ESCURIDÃO

Quem já viu minha imagem numa orla de riacho e parou para refletir o que de praxe se esconde? No horizonte, quem mirou a utopia, quem lembrou da profecia, agora todo sempre amanhã?

CRISÂNTEMO DAS GALÁXIAS

É bom mesmo que desfrutemos da salada e não demoremos a fustigar o novo feijão. Trazemos conosco uma nova esperança, e o futuro agora pode ser previsto. Já não se trata mais de vida ou morte, fomos atiçados pela cereja do bolo, crueldade, os fungos brilhantes zombam de nós, deslizamos por uma nuvem acrobata. Não é difícil entender porque as palavras têm esse poder restrito sobre nós, cada um de nós uma palavra.

RAPOSA

Certo, não alcancei as uvas. E só por isso tenho sido execrada todos esses séculos como um símbolo do orgulho despeitado, da hybris ressentida, da impotência invejosa. Contam minha história para as crianças, insuflando nelas desde cedo os vícios que pretendem combater; instruem-nas em desconhecer a misericórdia, esperando que unissonamente ajuízem: “bem feito para ela, quem mandou ter tanta empáfia?”. Desde então nunca mais fui procurada para esclarecer este incidente e dar minha própria versão dos fatos. Agradeço pela oportunidade de poder fazê-lo aqui, neste espaço democrático.  Pra começar, as pessoas falam do que não conhecem. Eu estava com fome? Consta que sim. Admito que estava. Mas o que não consta é que eu fosse particularmente uma entusiasta das uvas. Em verdade eu prefiro figos e nêsperas. Alguém conhece realmente o contexto cultural no qual estes fatos se deram? Sabem alguma coisa sobre a pressão social sofrida por mim para que alcançasse as malditas, sabe do horror ainda pior do “nem tentar tentei”? Então, porque me julgam? Alguém teve informação segura sobre as uvas estarem realmente maduras e doces? E se não estivessem, se eu as alcançasse, deveria comê-las mesmo verdes? Machão na frente de todos, mas gritando por mamãe depois na cloaca? Eu não gosto de uvas, as uvas estavam verdes, só fingi que tentei alcançá-las para afagar o meu super-ego. Eu sou vítima nessa história. Vítima!  Sim, eu voltei depois quando alguma coisa caiu – é pecado ser curioso? Se fosse uma uva, e daí? E se eu quisesse a uva verde? Só comemos estritamente o que adoramos? E se fosse, excepcionalmente, uma uva madura, teria algum mal eu apreciá-la? Só porque eu não gosto de uma coisa sou obrigado a não gostar para sempre? Não posso rever meus conceitos, minhas crenças e até o meu paladar? E se, por outro lado, eu realmente quisesse todas aquelas uvas maduras, haveria algum problema nisso? Só porque eu tentei e não consegui todo mundo me chama de má perdedora, mas alguém leva em consideração o calor do confronto, a raiva que eu senti naquele momento de derrota acachapante? Quando estamos irados pela vergonha dizemos coisas que não queremos, ou pelo menos não devíamos dizer! Ninguém levou isso em consideração, me estigmatizando por completo. E a cada nova versão da história ela fica mais sádica, as uvas – minha comida predileta – são mais doces e suculentas a cada reescrita, e minha fome, que já era colossal quanto se deram os fatos, a cada versão se torna mais monstruosa. Aqueles que não forem patéticos como eu, que atirem a primeira uva (madura, por favor), e comecem logo a me condenar. Sei que mereço o opróbrio eterno, mas não consigo mudar minha natureza.

DIABRETE

Só faltam quatro! Só faltam quatro!

TORVELINHO DO ALVORECER

O sol brilhando na imensidão do céu azul, as gotas de suor de minhas costas refletindo o incêndio de minha alma, as almas defenestradas do paraíso dentro do espelho perdido, o enxame de cupins corroendo a matéria residual, o sonho do profeta desejoso de que a realidade seja real, a fotografia de uma fotografia aparente – aparências.

GATO DE SCHRÖDINGER

A vida – a de Frederic inclusive – é uma caixa preta em que estamos sem nunca saber realmente se existimos ou não. Somente quando essa caixa é aberta – e ela raramente é aberta – é que saberemos que a resposta para a nossa pergunta não faz o menor sentido.

DIABRETE

Só faltam dois! Ai, que emoção!

PRIMAVERA

Qual é o seu problema?

UIRAPURU VOYEUR

Isso aconteceu comigo. Eu solicitei ao padeiro 10 pães quentinhos, e ele disse que nem todos os 10 estariam quentinhos. “Mas quantos estarão” – perguntei. Ele disfarçou, fingiu que não entendeu a pergunta, falou que agora usava um novo tipo de fermento. “Certo, mas vou querer dez pães quentinhos”. Ele esboçou uma fisionomia perturbadora, não era o tipo de fisionomia que vemos em pessoas que são obrigadas a mentir para não se comprometerem.  Ele parecia mesmo ter ódio dos pães, os pães já não eram mais um meio de expressão, era como que a sua felicidade perdida para sempre. O próprio pão era falacioso, porque assim também era o fermento.  Não posso provar, mas acredito que ele já não confiava mais no fermento. Sua vida pessoal também devia estar abalada, com problemas familiares atrapalhando sua atuação profissional. Eu já estava quase desistindo de perguntar, mas ele, acabrunhado, revelou que 7 pães estavam quentinhos e que os outros três ele não iria esquentar, mas que eu poderia levar de graça, se quisesse. Ameacei-o de morte caso ele insistisse em me fazer levar três pãezinhos de graça. Ele fez que não ouviu. Cumpri a ameaça.  Ele continuou fazendo-se de morto. Fui arrastando-o para fora da padaria, deixando no chão um rastro escarlate de nostalgia. Quando eu saía com o corpo, do qual pretendia livrar-me tal como vi num filme de serial killer (esses filmes ensinam umas coisas sujas para a gente), deparei-me com um detetive, que ficara sabendo de um crime hediondo nas dependências. Informei que desconhecia o incidente, mas, vexado por não ser útil, ofereci-me a prestar esclarecimentos sobre outros assuntos, se assim fosse do seu agrado. Fui levado à delegacia a fim de ser interrogado, mas voltaram com o assunto do homicídio macabro, e queriam me ouvir como testemunha.  Depois de algum tempo, quando finalmente perceberam que eu nada sabia, fui liberado. Foi um momento tenso, pois pensei que iriam me perguntar do cadáver que eu levava comigo e, sem saber mentir, seria obrigado a revelar a incompetência do padeiro e talvez até mesmo detalhes constrangedores de sua vida conjugal infeliz. Uma vez que me livrei do corpo, voltei à padaria, a fim de recuperar os pãezinhos que lá deixei. Agora dois detetives lá estavam fazendo perguntas indiscretas. “Tudo o que eu tinha a dizer, já disse na delegacia”, revelei, tentando ser enérgico. Mas eles não gostaram do tom com que eu pronunciei essas palavras (lá sustenido) e fui detido por desacato à funcionário público fazendo exercício na profissão (umas flexões de braço, parece). O delegado não gostou de me ver duas vezes no mesmo dia, e quis fazer mais perguntas sobre a história dos pães. Porque já estavam sabendo até que o padeiro havia recusado a esquentar num microondas os pães de um freguês, pode isso? “Sim, isso aconteceu comigo, inclusive”, achei por bem não omitir. “Também aconteceu com quem estamos procurando”. “Será que posso ajudar?”. “Não sei, você viu alguém suspeito, alguma conversa estranha com o padeiro?”. Resolvi descrever a mim mesmo para que produzissem um retrato falado (nunca ninguém fizera o meu retrato antes, era uma oportunidade única), e não seria um ato leviano, já que eu fora mesmo a única pessoa que conversara com o padeiro naquele dia. O rosto ficara bem parecido com o meu, o que prova que sou bom fisionomista. Já o corpo, mais parecia o do Schwarzenegger. “Não será difícil encontrar esse brutamontes”. – falou o delegado entregando o retrato para dois policiais. A coisa foi tão rápida e ele parecia tão agitado que não tive coragem de pedir uma cópia do retrato para mim.  No dia seguinte encontraram o brutamontes, que no entanto negou a autoria do crime.

DIABRETE

É isso aí Fre...

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Estou na superfície lunar. Ano do rei posto. Viagens no tempo também estão entre meus dons. Vocês podem me ver sorrindo pelo telescópio? Não? Amigos, eu voltarei. Eu voltarei, “Domotiulo”.