"Não podes ver mais do que vês?"...
Lá no alto da escadaria era possível ver soturna figura, para ser mais exato ver não, sentir.
Rabsaqué não se da ao luxo de aparecer diante daqueles que não merecem sua presença. Contudo pode abrir certas exceções apenas para coagir alguém ou para que a pessoa fique deslumbrada diante de sua gloria.
Se fosse possível divisar o rosto da sombria criatura envolta em sombras, alguns poderiam achar até que ele olhava com indiferença para o esquife, ou com ar de vitória.
Os poucos que apareceram, falaram de como se conheceram e o que lembravam dele, Até o padre esqueceu que era padre e fez uma dancinha estilo Frederic em um dado momento, enquanto Amaranta falava e gesticulava com um envelope em mãos. Todos falavam e falavam, mas ninguém o conheceu como ele. Além da máscara, além do nome, além de um rosto, ele via a essência.
Mas esse não era o caso, ele entre todos ali presentes sabia realmente o que todos haviam perdido, alguns perderam um irmão de alma, um maluco excêntrico, alguns um amigo, um filho e um pai. Mas além deste conhecimento que escapava despercebido para os outros, Rabsaqué havia perdido um oponente poderoso, os papéis sempre se trocavam quando o assunto era Frederic.
Ele podia ver além das macaquices que ele aprontava, sabia que aquilo era a maneira que ele tinha para manter as pessoas afastadas e poder usar seu maior dom. O dom da Criatividade.
Podia claramente lembrar-se de um dos últimos encontros que tiveram. Ele era um dos poucos que conseguiam pegar Rabsaqué com jogos de palavras. Isto o irritava.
Chovia muito em Ratal naquela tarde. Frederic estava no telhado do antigo casarão, usava como roupa apenas um roupão de banho de um vermelho tão intenso que fariam morangos morrerem de inveja.
- O sol está bem radiante hoje, não acha, Rabinho?
- Estás cada dia mais louco mesmo, e não me chame de Rabinho se tem amor às próprias entranhas.
- Qual é, vai me dizer que você é igual aos outros, está vendo apenas abaixo das nuvens, pois eu sei que acima delas e muito mais além o sol continua fulgurante e majestoso.
Se naquele instante Rabsaqué estivesse segurando um diamante nas mãos ele com certeza o teria trincado de ponta a ponta, tamanha foi a fúria que o assolou.
Mas manteve a voz calma e melodiosa como sempre.
- Sua forma peculiar de ver o mundo sempre me surpreende, às vezos me esqueço do quão farsante você é.
- Mas você não vai contar a ninguém, afinal de contas quem acreditaria no tio da mentira...
Frederic era um dos poucos no mundo a respeito de quem ele não conseguia antecipar o próximo passo. Com os demais era bem simples, pois antes de travar diálogo com qualquer pessoa, Rabsaqué o havia feito milhões de vezes e com diversas possibilidades, mas com Frederic a coisa era bem diferente. O buraco era mais embaixo... a pose excêntrica e louca era apenas uma fachada. E era difícil fazer isso com ele, pois ambos jogavam o mesmo jogo. Mas Frederic tinha uma vantagem. As pessoas o classificavam como louco, o subestimavam e, o pior, menosprezavam sua mente brilhante. Não viam como ele realmente era.
- Quando você vai contar aos outros sobre seu filho?
- Quando meus gatos aprenderem a La Marseillaise em chinês ao contrário.
- Sei da existência do mesmo, mas ainda não consegui encontrá-lo. Mas é questão de tempo. E por falar em tempo, é justamente isso que você não tem.
- Meu chapa, eu falo pra você como pentear o seu cavanhaque? Ou como torturar mentalmente os fracos? Não, pois então cuida do seu que eu cuido do meu.
A chuva já diminuía, Frederic estava todo molhado e parecia muito contente com isto, olhava com fascínio os relâmpagos distantes e os clarões entre as nuvens escuras.
A cidade se estendia logo adiante, o contorno das casas e fábricas pareciam, a seu ver, formar desenhos com um padrão definido. Estendeu a mão e brincava de desenhá-los com a ponta do dedo, seguindo as linhas e contornos. Ele sorria feito criança com um brinquedo novo. Ou como alguém que descobre um segredo.
- Qual é mesmo a palavra que usamos para quando as coisas e pessoas não são mais aquilo que deveriam ser?
- Mudança.
- Sim, isso, mudança, é o que vejo. Tudo está diferente e nada é ou será como antes.
- Sabe, eu vou sentir realmente falta disto tudo.
- Saber o que você sabe não te desespera, não é?
- Não, pois eu sou como você, e se fico triste uso a chuva para disfarçar as lágrimas.
- Não sei do que você está falando.
- Tudo bem, não vou discutir com você, é perda de tempo discutir quando se sabe que se tem razão.
- Além disso, Rabinho, eu tenho certeza que tudo é transitório. O rei está morto, e vida longa ao novo rei. Tudo na vida se resume a isto.
Rabsaqué absorvia cada palavra como seu sobretudo retinha as gotas da chuva, ele teria muito no que pensar nos próximos dias.
- Depois eu quero é ver o circo pegar fogo, nunca pensarão em me procurar no tempo. Pois eles ainda não aprenderam o segredo. Nós não precisamos estar aqui, ser estes aqui. Podemos mudar e ser outros, ou podemos ser o mesmo, mas apenas em tempos diferentes.
O chão pareceu sumir sob os pés de Rabsaqué.
- Sei que me entende, pois este é seu segredo.
Novamente Frederic o havia surpreendido, duas vezes no mesmo dia.
- Mas não se preocupe, o segredo está bem guardado comigo, nem todos estão preparados para receber a luz, enquanto isso ficam vendo apenas por baixo das nuvens, eles não conseguem ver o além... do além.
Agora, ali no velório, todas aquelas palavras pareciam ter algum sentido.
Só restava apenas aguardar.