Ano do Rei, missiva 875, Uma tarde Chuvosa no passado  

Posted by Jeremy Heathcliff

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"Não podes ver mais do que vês?"...

Lá no alto da escadaria era possível ver soturna figura, para ser mais exato ver não, sentir.

Rabsaqué não se da ao luxo de aparecer diante daqueles que não merecem sua presença. Contudo pode abrir certas exceções apenas para coagir alguém ou para que a pessoa fique deslumbrada diante de sua gloria.

Se fosse possível divisar o rosto da sombria criatura envolta em sombras, alguns poderiam achar até que ele olhava com indiferença para o esquife, ou com ar de vitória.

Os poucos que apareceram, falaram de como se conheceram e o que lembravam dele, Até o padre esqueceu que era padre e fez uma dancinha estilo Frederic em um dado momento, enquanto Amaranta falava e gesticulava com um envelope em mãos. Todos falavam e falavam, mas ninguém o conheceu como ele. Além da máscara, além do nome, além de um rosto, ele via a essência.

Mas esse não era o caso, ele entre todos ali presentes sabia realmente o que todos haviam perdido, alguns perderam um irmão de alma, um maluco excêntrico, alguns um amigo, um filho e um pai. Mas além deste conhecimento que escapava despercebido para os outros, Rabsaqué havia perdido um oponente poderoso, os papéis sempre se trocavam quando o assunto era Frederic.

Ele podia ver além das macaquices que ele aprontava, sabia que aquilo era a maneira que ele tinha para manter as pessoas afastadas e poder usar seu maior dom. O dom da Criatividade.

Podia claramente lembrar-se de um dos últimos encontros que tiveram. Ele era um dos poucos que conseguiam pegar Rabsaqué com jogos de palavras. Isto o irritava.

Chovia muito em Ratal naquela tarde. Frederic estava no telhado do antigo casarão, usava como roupa apenas um roupão de banho de um vermelho tão intenso que fariam morangos morrerem de inveja.

- O sol está bem radiante hoje, não acha, Rabinho?

- Estás cada dia mais louco mesmo, e não me chame de Rabinho se tem amor às próprias entranhas.

- Qual é, vai me dizer que você é igual aos outros, está vendo apenas abaixo das nuvens, pois eu sei que acima delas e muito mais além o sol continua fulgurante e majestoso.

Se naquele instante Rabsaqué estivesse segurando um diamante nas mãos ele com certeza o teria trincado de ponta a ponta, tamanha foi a fúria que o assolou.

Mas manteve a voz calma e melodiosa como sempre.

- Sua forma peculiar de ver o mundo sempre me surpreende, às vezos me esqueço do quão farsante você é.

- Mas você não vai contar a ninguém, afinal de contas quem acreditaria no tio da mentira...

Frederic era um dos poucos no mundo a respeito de quem ele não conseguia antecipar o próximo passo. Com os demais era bem simples, pois antes de travar diálogo com qualquer pessoa, Rabsaqué o havia feito milhões de vezes e com diversas possibilidades, mas com Frederic a coisa era bem diferente. O buraco era mais embaixo... a pose excêntrica e louca era apenas uma fachada. E era difícil fazer isso com ele, pois ambos jogavam o mesmo jogo. Mas Frederic tinha uma vantagem. As pessoas o classificavam como louco, o subestimavam e, o pior, menosprezavam sua mente brilhante. Não viam como ele realmente era.

- Quando você vai contar aos outros sobre seu filho?

- Quando meus gatos aprenderem a La Marseillaise em chinês ao contrário.

- Sei da existência do mesmo, mas ainda não consegui encontrá-lo. Mas é questão de tempo. E por falar em tempo, é justamente isso que você não tem.

- Meu chapa, eu falo pra você como pentear o seu cavanhaque? Ou como torturar mentalmente os fracos? Não, pois então cuida do seu que eu cuido do meu.

A chuva já diminuía, Frederic estava todo molhado e parecia muito contente com isto, olhava com fascínio os relâmpagos distantes e os clarões entre as nuvens escuras.

A cidade se estendia logo adiante, o contorno das casas e fábricas pareciam, a seu ver, formar desenhos com um padrão definido. Estendeu a mão e brincava de desenhá-los com a ponta do dedo, seguindo as linhas e contornos. Ele sorria feito criança com um brinquedo novo. Ou como alguém que descobre um segredo.

- Qual é mesmo a palavra que usamos para quando as coisas e pessoas não são mais aquilo que deveriam ser?

- Mudança.

- Sim, isso, mudança, é o que vejo. Tudo está diferente e nada é ou será como antes.

- Sabe, eu vou sentir realmente falta disto tudo.

- Saber o que você sabe não te desespera, não é?

- Não, pois eu sou como você, e se fico triste uso a chuva para disfarçar as lágrimas.

- Não sei do que você está falando.

- Tudo bem, não vou discutir com você, é perda de tempo discutir quando se sabe que se tem razão.

- Além disso, Rabinho, eu tenho certeza que tudo é transitório. O rei está morto, e vida longa ao novo rei. Tudo na vida se resume a isto.

Rabsaqué absorvia cada palavra como seu sobretudo retinha as gotas da chuva, ele teria muito no que pensar nos próximos dias.

- Depois eu quero é ver o circo pegar fogo, nunca pensarão em me procurar no tempo. Pois eles ainda não aprenderam o segredo. Nós não precisamos estar aqui, ser estes aqui. Podemos mudar e ser outros, ou podemos ser o mesmo, mas apenas em tempos diferentes.

O chão pareceu sumir sob os pés de Rabsaqué.

- Sei que me entende, pois este é seu segredo.

Novamente Frederic o havia surpreendido, duas vezes no mesmo dia.

- Mas não se preocupe, o segredo está bem guardado comigo, nem todos estão preparados para receber a luz, enquanto isso ficam vendo apenas por baixo das nuvens, eles não conseguem ver o além... do além.

Agora, ali no velório, todas aquelas palavras pareciam ter algum sentido.

Só restava apenas aguardar.

This entry was posted on domingo, 28 de fevereiro de 2010 at 08:51 . You can follow any responses to this entry through the comments feed .

2 comentários

Querido Frederic,

Você fala como se soubesse muito a meu respeito, querendo demonstrar sua esperteza por me surpreender. Uma vez que me digno fazer o seu jogo, você experimenta uma falsa segurança em relação a mim, sem ao menos se questionar, ainda que por medida de cautela, que alimento essa segurança simplesmente por me entediar ser temido por todos. Com você me porto diferentemente só por causa de várias noites de sono.

Assim, contando mais de oito mil anos de existência, tenho esta tendência, mais do que natural, de não levar a sério quando os anjos se apresentam ante mim com atitude de saberem mais do que eu, especialmente — e você há de me dar razão — quando um mortal se achega ao escabelo do meu trono para afirmar uma tal superioridade. Fique sabendo que você estava falando com meus pés, por isso o cheiro familiar que pôde aspirar em troca. Contudo, sou deus bondoso, que faço misericórdia em milhares aos que me amam e guardam os meus mandamentos.

Mas, sacrifícios são necessários, portanto esta litania inicial, para pôr à prova sua boa vontade. Agora posso manifestar minha magnanimidade, que consistirá justamente em lhe mostrar quem é você e com quem você está lidando.

Você pode achar que minha oferta de ajuda, com o tom preceptivo e impressão de poder que o mesmo forja, seja um blefe, para reduzir você à condição humilhada que tanto provoca a excitação deste pretenso deus amante. Mas não olvide que dito pensamento só brota em sua mente porque você blefou. Já eu, sou praticamente onisciente, e nisto reside toda a diferença. Eu sei que você quer ser igual a mim. A que ponto chega a arrogância do ser humano. Para se igualar a mim, você terá que assistir o nascer de muitas civilizações, tomar parte na história de seu desenvolvimento, extrair as lições do ocaso de cada uma delas e manejar o surgimento dos próximos impérios.

Onde você estava na manhã de 16 de dezembro de 1773? Eu estava no porto de Boston, comemorando na Festa do Chá, muito embora com outro tipo de beberagem. Onde você estava na tarde de 14 de julho de 1789? Eu estava em Paris, testemunhando a Tomada da Bastilha. O que você ficou fazendo o dia inteiro hoje? Jazendo esquecido em um caixão? Pois bem, eu estava sentado ao lado do Papa, sussurrando-lhe ao pé do ouvido qual será a próxima religião que ele deve xingar, a fim de que eu possa rir ao ler o anúncio da Comissão de Relações Religiosas do Vaticano se retratando pelos desatinos de Joseph Ratzinger.

Quando ele disse para o público da Universidade de Regensburg "Mostrem-me o que Maomé trouxe que fosse novo, e lá vocês encontrarão apenas coisas más e desumanas, como o seu comando de espalhar pela violência a fé que ele pregava", houve toda aquela polêmica na comunidade muçulmana, e Ali Khamenei, autoridade máxima do Iran, declarou guerra contra o Vaticano. Depois disso o Vaticano divulgou uma carta em que o Papa "lamentava" que as declarações tivessem ofendido os muçulmanos, que ele estava "profundamente sentido" com a reação dos segmentos islâmicos diante de algo que havia falado que não expressava seu "pensamento pessoal" e que seu discurso "era e é em sua totalidade um convite ao diálogo franco e sincero com grande respeito recíproco"...

Está óbvio aí que valeu a pena eu ter tentado Joseph a não ter papas na língua. Ri muito. Ri a bandeiras despregadas. O Holocausto foi minha piada. A bomba em Hiroshima e Nagasaki, uma aposta minha com Deus. Ele saiu ganhando como sempre, e está aí o estrago para provar isso, vez que as seqüelas da explosão se fazem sentir até hoje, sendo uma delas este meu bom humor.

5 de março de 2010 às 12:37

Por isso Deus diz "Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem mal, que fazem da escuridade luz, e da luz escuridade, que põem o amargo por doce, e o doce por amargo." Porque essa pessoa perde o discernimento. Sua mente se habitua a ver todas as cores no preto e nenhuma cor no branco.

Que autoridade tem você, Frederic, para dizer o que é o que não é? o que está errado e o que está certo? quem sou eu e quem é você? Ouça você mesmo. Quantas vezes pediu desculpa, e quantas vezes retirou a desculpa, quantas vezes admitiu que errou e quantas vezes justificou seus erros, quantas vezes percebeu que agiu mal e quantas vezes refez o cenário de modo que não pudesse mais ser visto mal algum nas ações que praticou, ao ponto de chegar aonde estamos agora, de chamar o médico de doente e pretender o papel de sã? Você não está no controle, Frederic.

Você não se conhece e não sabe o que faz. Não percebe que toda a sua justiça, toda sua suposta capacidade para fazer algo que preste, é como trapo de imundície.

Se você quer tanto me ajudar, ajude-me a entrar em você. Não tem que haver dor, ela é apenas uma questão de postura. "Ah! se tu soubesses, ao menos neste teu dia, o que à tua paz pertence! Mas agora isso está encoberto aos teus olhos." Onde está a dor quando se considera que o único que pode destruir você, te ama? Você pode se submeter ao meu poder, ou lutar contra mim — e perder.

Se você pudesse ver o que eu vejo, saberia que estou dizendo a verdade. Mas então, de novo, como você vai ver? Pagando para isso.

Pese o risco que vale mais a pena. E para ajudá-lo nesse exercício de reflexão, avalie a árvore por seus frutos. A reflexão bem feita trará você diretamente aos meus braços.

De seu mestre e soberano,
Rabsaqué.

5 de março de 2010 às 12:38

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