Ano do Rei, missiva 117, Entre os selenitas.  

Posted by Fabio

"Meu objeto não está completo e, para completá-lo, é necessário que eu diga com que olhar, se eu fosse um outro, eu veria um homem tal como sou"
(Jean-Jacques Rousseau, "Rousseau, juiz de Jean-Jacques , p.15)

A máscara do homem invisível

Soube que estavam à minha procura. Perguntavam por um sujeito destro, naturalmente cético, que apreciava o vôo das corujas e se abstinha de cachaça durante todo o verão. Era provavelmente assim que eu era visto a olho nu, por muito que eu me esforçasse (e isso me valeu uma ciática) em contrariar as expectativas meteorológicas e as previsões dos astrólogos. Afinal, convenhamos: foi-se o tempo em que bastavam as aparências para enganar; hoje, para ludibriar, é preciso, antes de tudo, ser honesto, verdadeiro, é preciso estar imerso em águas translúcidas. Quão repugnante é o tom "confessional", bem sei, mas ponha-se no lugar da platéia. Nós, que não somos grandes homens, compassivamente vos interrogamos: "que fareis, quando tão somente a mentira vos parecer verossímil e não puderdes mais escolher?" A verdade é delirante e o ator, esse parasita das sombras, semeia a fantasia e o sonho em regiões inexploradas do falso; ocupa, desocupando, o espaço de outro corpo, de um corpo incorpóreo, para depois, fantasma assombrado por fantasmas, cuspir o que sobrou de sua alma, profeta do limbo dos heróis.

- Você por acaso viu passar por aqui um sujeito cético, destro e abstêmio?

A pergunta fora dirigida, conforme informação segura do detetive particular que contratei para seguir aqueles que me seguiam, a um rapaz em coma alcoólico que disse (ele saiu do coma apenas para responder a pergunta) que o sujeito procurado era ele mesmo. Um canastrão, decerto, o que não impediu que a notícia se propagasse como a um vírus faminto. Quem, neste mundo de pós-lucidez não acreditaria numa farsa tão ordinária, a beleza do homem comum em coma, embebedado pela sua vaidade? E o ator hoje é obrigado a forçar a natureza, a mostrar um lado oculto, como se fosse a lua transtornada, a fim de receber o infame aplauso. Quem nunca se acostumou a discernir a franqueza da engabelação, tende a tomar uma pela outra, e a preferir a segunda, porque, mal educado nos prazeres da ilusão, encontra no cotidiano acinzentado um doce escapismo. No ano do rei, já não existe puro artifício, existe o reality show, em que a história fora da história parece tão mais estapafúrdia, que resta à ficção ser meta-ficção e comentar, resignada, as peripécias incontidas da vida real.

Confundido com um canastrão em coma! Deixa estar, não foi de todo ruim a embrulhada, vez que até me tornou, aparentemente, alguém mais complexo, mais rico e matizado. Agora perguntavam por um sujeito cético, destro, abstêmio...e ébrio.

Quando a busca pela verdade é o último refúgio do logro, só nos resta sonegá-lo. Porque sempre existe algo a perder e, às vezes, quando se perde é exatamente quando se ganha. Houve um tempo em que fui considerado um estereótipo. O estereótipo do não-estereótipo. Eu possuía um arco dramático, sustentava um intrigante dilema moral e era dotado de uma personalidade distinta que, nem por isso, deixava de ser contraditória. Não é nada fácil ser contraditório. É preciso freqüentar com a mesma desenvoltura a luz e a escuridão, a sanidade e a loucura, a vida e a morte. É preciso buscar estoicamente o prazer e aleatoriamente a ordem. É preciso coragem para temer e ter medo de ser herói. É preciso ter força para fraquejar, é preciso ter fé na descrença. Mas tudo o que eu tinha era um arco dramático e um intrigante dilema moral, e com isso não podia ir adiante sem me perder. E o que perdi, em seguida, foi o arco dramático. Fui abandonado na página trinta e seis, sob o pretexto de que o meu desaparecimento iria trazer repercussões decisivas para todos os demais. Deveria eu me entregar definitivamente ao ostracismo ou recomeçar outra vez, simulando a amnésia coletiva em torno do meu nome? Esse o meu risível dilema, que me ocupou por bons e, com o olhar do distanciamento histórico, até mesmo saudosos dezenove segundos de uma fria manhã de setembro. Após este breve, mas intenso, matutar, decidi deixar que minha decisão decidisse por mim. Decidi que não decidiria bulhufas, que não teria mais dilemas nas frias manhãs de setembro, nem características peculiares, nem seria mais o estereótipo sonhado pelos meus autores. Não me sobrara nada, é verdade, mas eu me sentia mais parecido comigo mesmo.

Nessa época ganhei um novo papel. Fui convidado para interpretar Epimênides em seus anos áureos. Epimênides tinha sido abandonado por toda a população de Creta, que não suportava mais suas lorotas demonstradas em modo geométrico, e estava agora sozinho na ilha. Foi quando fez um "mea-culpa" que não disfarçava o despeito, proferindo sua célebre frase sobre os habitantes de Creta serem todos uns mentirosos. Eu ainda adotava o método de Stanislavski, e queria que o meu público acreditasse na veracidade do personagem, por mais que ele não fosse verossímil. Mas minha cota de fé na humanidade era limitada, e de Epimênides eu só conseguia duvidar. Ele não era provável, o que ele dizia era algo que, evidentemente, ele não poderia dizer. Se Epimênides mente, é uma mentira que ele mente, logo, ele não mente. Mas se Epimênides não mente, como pode alguém que não mente dizer que mente?  O direito de mentir é sagrado, mas e o de se declarar um mentiroso? E o direito de se queimar no inferno da auto-referência, ardendo sob o som crepitante das labaredas ilógicas? Epimênides ousava dizer "estou mentindo agora", dando voz a uma quimera sorridente. Usava a linguagem para exprimir algo que a própria linguagem duvidava que pudesse exprimir. Eram dois Epimênides, duas Cretas, dois universos. Havia o Epimênides mentiroso e havia o Epimênides que dizia "eu agora". Eles podiam viver vidas separadas, independentes. Mas por força de alguma desarmonia pré-estabelecida os mundos paralelos, em alguns momentos mórbidos, se perpendicularizavam, os Epimênides se fundiam num só e sua própria existência ia às favas. Como representar o que não existe nem pode existir?

Talvez haja dois de mim mesmo, talvez mais que dois. Talvez eu esteja mais próximo de mim em algum multiverso distante. Talvez o meu "eu" mais egóico esteja fora de mim, me arrastando para dentro dele. Seria possível que meu mundo interior fosse experimentado além de minhas – possíveis – várias instâncias? Seria possível fugir das amarras da finitude e dispersar minha individualidade nos tentáculos do Grande Todo?

Anton von Hulloder estava mentindo. Não queria subtrair sua alma. Epimênides era uma espécie de modelo a ser imitado. O que ele dizia não era verdadeiro, nem falso. Era um ator em surto esquizofrênico que fingia que fingia, fingia que era o simulacro de um fingidor fingindo que não fingia. Epimênides fora a última farsa de Hulloder, e ela o fatigara sensivelmente. Sempre havia se dedicado aos seus fantasmas com afinco, ligando-se a eles umbilicalmente. Depois de completado o trabalho, continuava vivendo vida dupla, e só participava de rituais de exorcismo (ele contratava os serviços de um amigo que era sacerdote free lancer) quando do início de uma nova empreitada dramática. Numa ocasião, chegou a levar dois anos de vida vegetativa para interpretar um coqueiro no Havaí, para um público de turistas dinamarqueses. Em outra, quando fazia Otelo, drogava a mulher com psicotrópicos que a deixavam com comportamento ninfômano. Engordara trezentos e sete quilos para encarnar um lutador de sumô e reduzira um metro e oito centímetros em sua altura para bem compor um anão. Hoje, claro está, Hulloder não faria mais isso. Já não queria mais convencer, queria um papel que pudesse fazer o público pensar ser ele qualquer coisa, menos aquilo que ele estivesse a representar.

Só havia uma possibilidade para Hulloder e é muito oportuno dizer agora, justo agora, que a oportunidade acabara de chegar. O cineasta Nereu Raviola ficara encantado com as histórias de vida do ator, e as queria levar para as telas. E assim, depois que o desafiante trabalho fora recusado por Jack Nicholson, Al Pacino, Billy Crudup, Julia Roberts e Marlon Brando (a recusa deste fora psicografada), Raviola propôs a Anton von Hulloder o papel de sua vida. Embora de início ele também o tenha recusado, alegando não ter o physique du rôle adequado, as dificuldades financeiras, aliadas às reflexões retro-mencionadas, o fizeram aderir à proposta. Hulloder seria agora o objeto de sua investigação, seria ele próprio o alvo de suas profecias.

This entry was posted on domingo, 28 de fevereiro de 2010 at 08:54 . You can follow any responses to this entry through the comments feed .

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